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Segunda-feira, 17/2/2003
Farinhas fundidas
Eduardo Carvalho

Pruduzindo farinha

Nada expõe com mais precisão a personalidade de uma pessoa - seu gosto, sua preferência, sua inteligência, etc. - do que a atividade a que ela se dedica em seu tempo livre. Nada é mais eficiente, então, quando se pretende conhecer melhor alguém, do que descobrir o que ele faz quando não precisa fazer nada - a não ser aquilo que, sem nenhuma pressão externa, ele voluntariamente se dispõe a praticar. Profissionais e estudantes são sistematicamente obrigados a dedicar parte de seu tempo a tarefas que, com algumas exceções, são desgastantes e desagradáveis. Mas nem o estilo da profissão nem o tema de estudo são suficientes para tirarmos conclusões superficiais sobre alguém. Um chaveiro pode, na aconchego de seu lar, passar o fim de semana lendo Evelyn Waugh; um motorista de táxi pode freqüentar assiduamente exposições de orquídeas selvagens; um diretor de banco pode preferir, ao movimento urbano, uma pescaria em uma lagoa distante. E nesse momento de lazer, sem exigências e sem compromissos, é que profissionais, competentes ou não, revelam quem realmente são, sem poses forçadas ou máscaras felizes.

Porque, além dos prováveis exemplos citados, há também o chaveiro viciado em cocaína; o motorista de táxi que, ao chegar em casa, costuma espancar a mulher; e o diretor de banco que, em vez de pescarias tranqüilas, gosta de brigar em boates. E vivem por conta dessas preferências. Essas opções são, evidentemente, mais confiáveis para a análise de uma personalidade do que a atividade a que, no horário comercial, as pessoas são obrigadas a se dedicar. No ambiente acadêmico, desde escolas primárias a cursos de pós-graduação, a relação é mais ou menos a mesma: ou seja, praticamente não há relação entre as notas obtidas por um aluno e seu verdadeiro interesse extra-curricular. Normalmente, alto desempenho curricular está mais ligado a uma personalidade suscetível a cumprir obrigações do que a um legítimo interesse em aprender sobre, por exemplo, o processo de reprodução dos protozoários. Um aluno com boas notas pode ser tão imbecil quanto um executivo baladeiro e briguento. Insisto: não é a nota, como não é o salário, o que esclarece com mais fidelidade o estilo de vida de uma pessoa. Parece óbvio.

Não é. Bons alunos, como os pais querem e as escolas exigem, são quase sempre os que tem naturalmente mais capacidade de armazenar dados - e não, ao que parece, os que realmente são movidos por um irreprimível interesse em ampliar seus conhecimentos, para, assim, entenderem melhor como o mundo funciona. Uma coisa é acumular dados dispersos e conseguir reproduzi-los quando exigido. Outra é a habilidade para coletar e selecionar informações, relacionando assuntos e idéias, e, depois, extrair conclusão original sobre o tópico analisado. E é essa segunda capacidade que falta aos bons alunos convencionais - e também, não é preciso dizer, aos maus alunos normais -, porque exige o que, na maioria das vezes, a escola não entrega e não estimula: ampla cultura geral; curiosidade por temas diversos; dedicação ao estudo solitário; necessidade de desenvolver e expressar opiniões próprias. E essas qualidades pessoais são, cada vez mais, desprezadas e anuladas, por um rebanho intolerante e agressivo. É preciso, então, antes de tudo, vontade e coragem para se distanciar do rebanho.

O que percebo com nitidez, no entanto, por experiências pessoais - em ambientes, eu diria, cientificamente adequados - , é que a diferença entre um aluno aprovado no vestibular do curso mais concorrido de graduação do Brasil e uma dançarina de axé incapaz de articular uma frase de forma correta é, em muitos casos, quase nula. E, quando existe, é mais comum que seja uma simples questão de gosto musical - se a dançarina é "apaixonada por axé", o estudante é "viciado em rap". O estudante, por sorte - ou, talvez, azar -, á capaz de decorar datas e fórmulas, e, em alguns casos, por hábito ou obrigação, dedica parte do seu tempo a isso. A dançarina completou o colegial, mas, por esses acasos naturais, tem dificuldade em acumular informações e em se concentrar regularmente. Conclusão: enquanto um prefere as atividades acadêmicas, em que tem facilidade, o outro deriva para a "carreira artística", onde pode desenvolver seus talentos e esconder seus defeitos. Suas personalidades são aparentemente divergentes. Aparentemente, apenas. No fundo, porém, os interesses se fundem.

O trote aplicado em diversas universidades brasileiras é, aliás, um exemplo claro de semelhança entre jovens absolutamente incultos e estudantes supostamente educados. A severidade do vestibular não tem a menor ligação com a civilidade do ritual. Ou tem, mas inversa: parece mesmo que existe uma correlação positiva entre a pontuação exigida pelo vestibular e a barbaridade da recepção dos alunos. Basta visitar um baile funk - ou, para aproveitar o caso anterior, um show de axé - e, depois, o churrasco de recepção dos bixos de uma faculdade concorrida. As coincidências são óbvias: adolescentes semi-nus, de todos os sexos e preferências; desconhecidos se beijando calorosamente; fundo musical horrível (o mesmo, normalmente); insinuações de posições eróticas e esfregações pornográficas. É verdade, e pode servir como desculpa: os hormônios, nessa idade, estão a todo vapor. Mas não há nada que justifique a insistência obsessiva em brincar quase exclusivamente com prostitutas, travestis, cueca, calcinha, vibrador, foto e imagem de gente pelada, algemas e correntes. Entre tantas possíveis opções, a escolha por esse único assunto parece menos erupção libidinosa do que barbarismo espiritual. A principal intenção dos organizadores desses churrascos é, afinal, que todos se divirtam ao máximo.

E o estudante com currículo brilhante se diverte exatamente do mesmo modo que sua ex-colega de escola, que alimenta sua prole dançando semi-nua. Os dois são assíduos espectadores de Big Brother - mas preferem, cada um, um participante. Ambos lêem devotamente John Grishan e Danielle Steel - mas preferem, cada um, um livro. Ambos apreciam estilos de música que, sob um exame mais rigoroso, dificilmente seriam considerados música - mas preferem, cada um, um estilo. Ambos idolatram personalidades famosas, cada um em seu ambiente, sem reservas ou revisões - um, Marilena Chauí; outro, Hebe Camargo. Pode ser que, para quem vive com os mesmos modelos e referências, essas personalidades sejam inconciliáveis, quase opostas.

Como se existisse diferença profunda entre participantes do Big Brother, e não houvesse uma uniformidade evidente em pessoas desinteressantes e vendidas. Como se autores ruins conseguissem produzir obras realmente distintas, e não estivessem condenados pela homogeneidade medíocre. Como se, enfim, Hebe Camargo e Marilena Chauí, afora os gostos em maquiagem, não fossem essencialmente semelhantes: péssimo gosto para roupas; relação infantil com política; distância oceânica dos debates atuais e internacionais; chatice inesgotável e insuperável - a não ser por elas mesmas. A diferença que existe, então, no fundo, entre o estudante exemplar e a dançarina de axé é, mesmo com sutis divergências, praticamente nula: os seja, quase a mesma que separa Hebe Camargo de Marilena Chauí.

O saco que as embala pode, portanto, apresentar ligeiras alterações. Mas a farinha é a mesma - e a data de vencimento também.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 17/2/2003

 

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