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Segunda-feira, 24/2/2003
Arte Brasileira Hoje: um arquipélago
Jardel Dias Cavalcanti

Trouxas - Barrio, 1967.

Será possível fazer um mapeamento do que existe de mais relevante, de mais expressivo, de mais sincero na arte brasileira contemporânea? Que critérios estéticos usar para selecionar e captar a força criadora dos artistas e suas obras no mesmo momento em que surgem?

Agnaldo Farias lançou um livrinho, publicado pela Publifolha, na pequena coleção "Folha Explica", cujo título é justamente Arte Brasileira Hoje. Pretende ser um mapeamento não conclusivo, com 26 artistas, do que representaria o que há de mais relevante no nosso momento artístico.

O primeiro e mais assustador dado referente às escolhas é que o artista mais velho nasceu em 1929 (Lygia Pape) e um dos mais novos nasceu em 1961 (Jac Leirner). Trocando em miúdos, na escolha do autor, da novíssima arte brasileira não participa nenhum artista relevante que tenha, por exemplo, menos de 40 anos.

Não que a escolha esteja incorreta. Apenas causa estranheza. Mais ainda, todos os artistas escolhidos já estão "consagrados" do ponto de vista da história da arte brasileira, das Bienais e das galerias. Todos têm já garantidos os seus nomes no panteão da nossa arte. Até que ponto, portanto, a idéia de "consagração" não está determinado as escolhas do autor?

O que há de novo, então, na arte brasileira? Talvez a nova arte que nossos "velhos" artistas têm feito. Ou será que não existe mesmo jovens artistas fazendo nada relevante? Ou eles não têm vez no universo das bienais e das galerias mais importantes do país? Ou a consagração artística do mundo contemporâneo baseia-se exclusivamente na "experiência" (grossos currículos de participações internacionais), levando ao descaso os novos desbravadores? Não haveria também uma certa preguiça dos nossos críticos de arte que acham, pelo que parece, mais fácil ficar falando interminantemente sobre os mesmos artistas de sempre?

O autor poderia se desculpar diante destas questões. Afinal, o livro é pequeno e ele deve ter tido um prazo também pequeno para entregá-lo. Como sair à cata de novos talentos num momento desse? Estariam em jogo ainda questões mercadológicas (o que há de mais mercadológico hoje do que a arte?), afinal, quem compraria um livro sobre artistas desconhecidos? Mesmo no universo da crítica de arte, quem suporta o novo?

São questões que nos vêm à mente durante a leitura do livro. Mas, que fique claro, não podemos dizer que a escolha dos artistas foi irrelevante. E menos ainda dizer que a metodologia adotada para a apresentação da arte brasileira contemporânea foi incorreta.

Nada disso. Ao apresentar o que foi mais significativo na arte dos anos 60-70-80-90 (artistas como Barrio, Waltércio Caldas, Antonio Dias, Jac Leirner, Cildo Meireles, José Resende, Daniel Senise), para citar apenas alguns dentre os 26 artistas selecionados, o autor presta um serviço à jovem geração que ficou alheia ao conhecimento desta tradição (que se firmou nas décadas passadas e que continua ativa) e que agora pode ao menos ter um vislumbre deste universo. E ao apresentar um comentário de uma obra de cada artista ele inova na apresentação da história da crítica de arte, cuja tendência é generalista em sua prática de sobrepor teorias e conceitos em detrimento das particularidades de cada obra artística.

O livro que temos à mão se organiza da seguinte forma: uma introdução, que é um "pequeno guia para os perplexos" (já que a arte contemporânea é uma espécie de espantalho que a todos assusta - mais ainda se se pensar no caso da música erudita contemporânea, praticamente seqüestrada de nossa salas de concerto) e um capítulo individual para cada artista.

Na introdução, apresenta-se rapidamente o percurso da arte internacional do século XX, da organização das vanguardas com seus manifestos e programas, ao surgimento de uma arte de caráter mais híbrido. São ordenadas noções importantes para este cenário como o "afastamento dos cânones renascentistas, do compromisso de uma representação fidedigna do mundo, com as pinturas e esculturas se ocupando não em fabricar duplos da realidade, mas em afirmar suas próprias realidades". Logo após, "o desembocar na abstração foi o corolário desse processo de tematização de seus próprios elementos constitutivos, com a arte dando as costas para qualquer relação de ilustração do mundo".

É a partir daí que se afirma a arte contemporânea que "nasce como resposta ao esgotamento desse ensimesmamento da arte" quando surgem "expressões de formas híbridas, quando não, inteiramente novas, como as obras que oscilavam entre a pintura e a escultura, os happenings e as performances; as obras que exigiam participação do público; as instalações; a arte ambiental etc".

Existe ainda uma pequena reflexão sobre a arte brasileira dos anos 50 (construtivismo), dos anos 60-70 (expansão do objeto artístico, arte conceitual e arte política), anos 80 (retomada de formas tradicionais de expressão, como a pintura) e anos 90 (com a sensação de uma crise aguda ou mesmo do fim da arte moderna).

A introdução encerra-se com uma assertiva da "arte contemporânea como arquipélago". Ou seja, para o autor a imagem do arquipélago é a que melhor expressa o sentido da arte contemporânea: "um arquipélago porque cada obra engendra uma ilha, com topografia, atmosfera e vegetação particulares, eventualmente semelhante a outra ilha, mas sem confundir-se com ela".

O autor, por fim, adverte o leitor de que o livro é apenas um mapeamento, pois o arquipélago formado por nossa arte é tão rico que também seria fácil mapeá-lo com outros artistas e outras obras. Como não concordar com essa afirmação?

Após essa apresentação, são apresentados, em ordem alfabética, os 26 artistas escolhidos. Também acompanha a biografia de cada um dos artistas uma pequena bibliografia com estudos e catálogos e as principais exposições dos mesmos. Está de bom tamanho para os iniciantes.

Vale ainda dizer que os comentários sobre as obras são, sem sombra de dúvida, muito bem escritos, captando momentos importantes da carreira de cada artista. Revela uma percepção aguda do autor sobre as obras. Isso já é de um valor tremendo.

Para dar um aperitivo ao nosso leitor, escolhemos um trecho do livro de Agnaldo Farias, particularmente o sensível comentário sobre Artur Barrio, que reproduzimos à seguir.

ARTUR BARRIO

Alguns artistas iniciam suas carreiras com obras e atitudes radicais, até serem progressivamente domesticados pelo mercado, pelo prazer em freqüentar as recepções oferecidas pelos colecionadores e marchands mais elegantes. Radical no começo, Artur Barrio, ao longo de 30 anos, foi radicalizando ainda mais, perseguindo uma trilha pontuada por obras e atitudes tão alternativas que, durante algum tempo, foi dado como ex-artista. Nada mais equivocado. Não era silêncio, era o descaso da mídia, do mercado e das instituições para com a obra potente, política e violenta.

Em 1969, Barrio lançou um manifesto em que defendia o uso de materiais efêmeros e precários, a favor de sua situação de terceiro-mundista, contra a alta qualidade e o alto custo dos materiais dos artistas europeus e norte-americanos. Realizadas em papel higiênico, lixo, urina, estopa, suas obras eram registradas em filmes e fotografias, ou constituíam situações momentaneamente experimentadas pelo público, posteriormente guardadas na memória. Não se tratava de objetos comercializáveis. Eram, talvez, abjetos, coisas e ações que provocavam entre repulsa e estranhamento.

As trouxas ensangüentadas espalhadas pelo Rio de Janeiro e Belo Horizonte, em 1970, justificavam-se parcialmente como comentários sobre os subterrâneos hediondos da ditadura militar. Mas não se esgotavam como denúncia. Assim como também superavam a esfera da denúncia os 500 sacos de plástico com sangue, pedaços de unha, saliva (escarro), excrementos, meleca, ossos, etc., igualmente disperso pelo Rio de Janeiro. Cada saco, embora pleno de matéria e energia, metamorfoseia-se em simples receptáculo de dejetos. Lixo entre lixos. Esse é o destino das coisas que colocamos à margem da experiência ou que dela restaram. (...)

Realizado em 1979, Livro de Carne começa no momento em que o açougueiro fatia a carne fria, seccionando tecidos e vasos capilares. Mesmo o leitor mais fascinado jamais deparou com um livro tão vivo, um livro cujas páginas possuem texturas desiguais, variações de tonalidade entre o vermelho e o azul; que traz em suas irregularidades pequenos coágulos, lembrança do sangue que um dia correu espraiando-se pelos minúsculos canais, animando mesmo o poro mais recôndito. Talvez sintamos repulsa em manipula-lo, o que não deixa de ser uma contradição, já que despendemos tempo em leituras justamente com a finalidade de nos aproximarmos da vida, compreende-la, ou, ao contrário, lemos para escapar do tédio do cotidiano, para vivermos os dramas e aflições na pele de personagens literárias. Seja como for, esse livro de carne não cessa. O tempo passará e os vermes, sempre à espreita, irão devorá-lo, farão com que ele desapareça, apodreça, exalando um cheiro forte e deixando apenas uma nódoa me seu lugar.

Para ir além




Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 24/2/2003

 

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