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Segunda-feira, 17/3/2003
Revelando a Ditadura: entrevista com Carlos Fico
Jardel Dias Cavalcanti

Carlos Fico é professor de Teoria e Metodologia da História e coordenador do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Foi durante vários anos coordenador do CNRH (Centro Nacional de Referência Historiográfica), na UFOP. Autor de vários trabalhos sobre a história da Ditadura Militar, como Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (Fundação Getúlio Vargas, 1997) e Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política ( Record, 2001), coordena jovens pesquisadores no "Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar, na UFRJ. Também é autor de Ibase: usina de idéias e cidadania e A história do Brasil (1980/1989): elementos para uma avaliação historiográfica.

Na abertura do livro Reinventando o otimismo, o historiador Carlos Fico usa como epígrafe uma citação de Eric Hobsbawm, que explicita a importância do papel do trabalho dos historiadores: "eles contribuem, conscientemente ou não, para a criação, demolição e reestruturação de imagens do passado que pertencem, não só ao mundo da investigação especializada, mas também à esfera pública onde o homem atua como ser político".

Esta epígrafe serve para pensar as conseqüências do trabalho sobre a ditadura militar desenvolvido por Carlos Fico (tanto nos seus livros como no "Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar"). Ao tornar mais explícitas as formas e estratégias de dominação político-militar da Ditadura, revelando a natureza dos papéis dos personagens históricos daquele momento (muitos dos quais ainda hoje ocupam cargos na esfera política de nosso país, inclusive tentando falsear seu envolvimento com o período militar), como o papel do conjunto da sociedade (seja a participação da comunidade civil, religiosa ou de setores da cultura), Carlos Fico acaba fornecendo um material reflexivo que torna compreensível a movimentação não só de nosso passado recente, mas também os seus desdobramentos em nossa história presente.

A documentação da ditadura militar aos poucos vem se tornando pública, graças ao esforço e a seriedade de trabalhos como o de Carlo Fico e de sua equipe de pesquisadores. Por outro lado, há muito o que fazer para que a partir dos documentos ainda bloqueados pelo governo possa ser revelada a verdadeira face dos que detiveram o poder no país, guiados por práticas escusas e antidemocráticas que estão longe de representar os interesses da população brasileira.

Nesta entrevista, Fico traz a público o decreto expedido no final do governo de FHC, e referendado pelo presidente Lula, que dificulta o acesso a documentos sigilosos. Na entrevista, que o historiador Carlos Fico nos concedeu por e-mail, ele fala de sua produção historiográfica e de suas recentes pesquisas sobre a Ditadura Militar.

1 - Como surgiu seu interesse pela temática histórica do regime militar no Brasil?

Carlos Fico: Nunca fui militante de esquerda. Meu interesse pela Ditadura Militar é apenas teórico: é possível fazer uma "História Total"? Numa única mirada, reter as esferas econômica, política, social e cultural? Com esta motivação, busquei um tema que possibilitasse o exercício teórico pressuposto: reunir tão diversos enfoques. A Ditadura pareceu tema adequado: durou apenas duas décadas e foi período momentoso. Ademais, consegui acessar documentos sigilosos, graças aos meus conhecimentos da burocracia e da legislação brasileiras. Enfim, planejo escrever, quando for bem mais velho, uma "História Geral", quimera que perturbou o "século da história" (XIX) e o início do "breve século" passado. Ditadura militar brasileira é apenas um tema.

2 - Além de seus dois trabalhos publicados sobre a ditadura militar você desenvolve outras pesquisas sobre o mesmo período?

Carlos Fico: Sim. A idéia é estudar a fundo todos os temas desse período. Isso significa conhecer em detalhes temas muito diversos. Por exemplo, a atividade teatral (censura, cacoetes denuncistas de parte da dramaturgia etc.), a dinâmica social (apoio da classe média urbana à Ditadura), ou a problemática econômica ("milagre econômico", adequações do modelo desenvolvimentista baseado no capital estrangeiro etc.). Trabalho com uma equipe (Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ) e me dedico ao estudo desses temas segundo um cronograma estabelecido há alguns anos. Analiso, no momento, a curiosa vida de Delfim Neto.

3 - Já se pode falar em uma historiografia relevante sobre a ditadura militar?

Carlos Fico: Não. A maioria dos trabalhos ainda é caudatária das vicissitudes da época. Prevalecem os depoimentos dos que lutaram (contra ou a favor) e insistem em nos transmitir suas impressões. É etapa encontradiça em todos os países que viveram fenômenos semelhantes. Memória não é história. Memória pode ser fonte, dependendo da qualidade do historiador. Documentos sigilosos emanados da Ditadura são, hoje, o material mais importante. Pena que Fernando Henrique Cardoso, com a conivência de Luiz Inácio Lula da Silva, tenha bloqueado o acesso aos documentos sigilosos. Terei de devolver o dinheiro que o governo reservou para mim com pesquisador do CNPq? Todo o meu trabalho baseia-se em documentos sigilosos... O problema do eminente sociólogo, ao que parece, não é a Ditadura, mas papéis comprometedores produzidos durante o seu governo, talvez em relação às privatizações - mas isso é especulação minha, quase uma leviandade: de fato, não sei qual é a motivação do Decreto 4.553, de 27 de dezembro de 2002.

4 - Qual o valor para um historiador das publicações de caráter não científico, como, por exemplo, os depoimentos de presos e de perseguidos políticos pelo regime militar?

Carlos Fico: São fontes primárias. Historiadores lidamos com fontes primárias. Algumas nada têm a dizer, outras informam uma palavra, depois de um chorrilho tedioso. Ler os depoimentos de pessoas seviciadas como algo rotineiro é uma desdita, não uma boutade.

5 - Existem ainda arquivos importantes com ampla documentação sobre o regime militar ao qual os pesquisadores não podem ter acesso?

Carlos Fico: Claro. Espero ter acesso a eles em breve, pioneiramente, como tive ao "Fundo Divisão de Segurança e Informações", depois de uma batalha burocrática de cinco anos. Nada se compara ao prazer de ver um documento secreto pela primeira vez. A frase é um pouco demasiosa, convenho, mas pude entender muito da vocação de meus mestres quando me percebi, prazerosamente, analisando as idiossincrasias dos melancólicos generais-presidentes e seus asseclas.

6 - Se algum pesquisador se interessar pela ditadura militar que arquivos você recomendaria como acervos mais importantes de documentos?

Carlos Fico: O "Fundo DSI/MJ", do Arquivo Nacional, e os acervos das delegacias estaduais de ordem política e social (DOPS). Isso se o presidente Lula revogar o Decreto 4.553.

7 - Quando se fala em ditadura militar no Brasil a temática que mais chama a atenção é a das personalidades que morreram, dos que foram brutalmente torturados e dos que foram presos pelos militares (basta lembrar o caso Herzog e atentar para um dos arquivos mais bem organizados que é o "Tortura nunca mais"). Esse é o elemento mais importante para uma avaliação histórica da ditadura?

Carlos Fico: Não. Não tenho um envolvimento moral ou político com a questão. Não quero parecer extremamente blasé, mas os equívocos dessa esquerda tola (que optou pela luta armada), tanto quanto a ferocidade daqueles militares oriundos de uma classe média urbana fascinada pela retórica radical da direita (vide Carlos Lacerda), interessam-me pouco. Como já disse, não sou um ex-militante de esquerda, nem, tampouco, um ex-colaborador da Ditadura que "resolveu falar", nem, tampouco, um detentor de acervos comprometedores. Qualquer do povo poderia ter obtido acesso aos documentos que pesquisei, se tivesse paciência. Apenas quero escrever uma História Geral quando me aposentar. O tema da Ditadura pareceu-me adequado.

8 - O título do seu livro, Reinventando o otimismo, nos faz supor que existe dentro da história da tradição política brasileira um uso ideológico da idéia de que uma das marcas da brasilidade seja o otimismo. Qual o propósito desse uso para os "donos do poder"?

Carlos Fico: Parece-me óbvio. Projetar no futuro a idéia de um país promissor elide as responsabilidades do presente. Todo governo é otimista.

9 - Você se refere, em Reinventando o otimismo, a uma das táticas do governo Geisel, aquela de que "projetar no futuro um tempo de êxitos é, de alguma forma, garantir a aceitação do público", tal como também a idéia de que o "Brasil é o país do futuro". Até que ponto essa prática funcionou no período militar como instrumento eficaz de controle da população para fazê-la estar de comum acordo com o regime?

Carlos Fico: Essa prática funciona sempre, sobretudo quando boa parcela do povo não tem educação política, como é o caso brasileiro. Sou muito pessimista em relação ao Brasil: Rosinha "Garotinho" e Roriz são governadores. ACM e Arruda foram reeleitos. Um subpolítico chamado Landim acaba de renunciar pela segunda vez, demonstrando a lenidade da lei em relação a parlamentares criminosos (apesar do esforço do Aecinho, que fez aprovar legislação sobre imunidade parlamentar menos cretina).

10 - Qual o foco central de seu livro Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política?

Carlos Fico: Quando tive acesso aos documentos secretos da Ditadura, resolvi escrever este livro para dar logo uma visão geral do funcionamento da espionagem e da polícia política. A documentação é tão fantástica que resolvi não demorar muito escrevendo um longo tratado. Deixei os detalhes para meus orientandos, que estão pesquisando aspectos específicos como censura, tortura, corrupção e tal. Formei o "Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar na UFRJ". Obtive financiamento das principais agências de fomento à pesquisa e, agora, vamos produzindo nossos trabalhinhos.

Para saber mais:






Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 17/3/2003

 

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