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Sexta-feira, 7/3/2003
A ranhetice da égüinha pocotó
Alessandro Garcia

O e-mail chega na minha caixa postal com a precisão e eficácia com que os e-mails dispensáveis costumam chegar. Nele, um sujeito reclama do que chama de "nova sensação musical" e "novo ídolo da música popular brasileira", fazendo referência à extrema veiculação de mais um hit de verão, auto-intitulado "funk" (mas, bem sabem os conhecedores de tal gênero, bem distante a música está desta auto-intitulação: James Brown e a turma do Funkadelic se reviram, incomodados):"Égüinha Pocotó". O e-mail que me chega me faz rir um pouco por causa da quase ingenuidade e lugar-comum com que é escrito; faz referência óbvia à perda da qualidade da música brasileira, ao vazio em que nos encontramos e como estamos "dando espaço" para que tais "artistas" se insiram com "sucesso" no cenário musical brasileiro. O excesso de aspas é tanto para fazer referência literária às expressões utilizadas quanto para utilizar eufemismos. O autor do e-mail ainda é um pouco dramático ao dizer que se fosse hoje e surgissem dois jovens cantores chamados Caetano Veloso e Gilberto Gil seriam preteridos por este estilo de música que parece estar em voga. E Chico Buarque passaria fome. Neste ponto eu tenho que rir mais um pouco, primeiro pela dramaticidade, segundo por utilizar como exemplo de qualidade musical "de ponta" os batidos Caetano, Gil e Chico (sem desmerecê-los) e terceiro pelo quase medo que o autor expressa quando diz que é horrorizado que assiste sua filhinha contorcer-se ao som de tal "funk" bizarro.

É perda de tempo e falta de noção espacial e temporal mostrar-se tão horrorizado por um fenômeno, que surge com a mesma freqüência com que as estações se repetem durante o ano. Não é de hoje e, com certeza, não será este o último verão em que as tendências musicais, que aparecem principalmente nestes meses quentes em que a libido se encontra tão atiçada, que surgirão músicas de pouco caráter artístico, oportunistas o bastante para fazer uso de temáticas sexuais como atrativo popular. Já teríamos tido tempo o bastante para nos horrorizar, se isto se fizesse necessário, no momento em que este tipo de música, baseada na simplicidade de letras e/ou chulas e/ou infantis surgiram, amparadas em batidões sampleados de sucessos internacionais.

Se é um tanto incômodo ter em casa acesso somente às emissoras de canais abertos e não ter muitas opções além dos canais com suas péssimas programações dominicais, também não é a primeira vez que se vê um programa que dura quase o domingo inteiro, dominado por gostosas em roupas sumárias rebolando em closes estupendos ao som do batidão que vem das favelas cariocas.

"Não há mais nada que preste na televisão" é uma das frases que costumam ser repetidas à exaustão pelos ditos "puritanos" que se rebelam em e-mails indignados pelas caixas postais alheias. Por acaso, serão estes mesmos puritanos, que, no final das contas, garantem índices fantásticos de audiência a tais programas que, movidos por este fato, repetem incansavelmente, a cada domingo, a mesma atração? Afinal de contas, é tamanha a audiência por falta de opção, quando uma programação é imposta, ou a programação só é colocada porque existem pessoas sedentas de assisti-la? Sã contrasensos e constatações que podem ser frutos de demorados e insistentes estudos e que, quase invariavelmente, apontarão, obviamente, para as camadas menos favorecidas, a audiência conquistada por programas com tais atrações.

MC Serginho, o sujeito que atende pela autoria da supra-citada sensação deste verão é um sujeito com uma aparência humilde. Surge amparado por um travesti de pouca massa corpórea que requebra alucinadamente ao som do "pocotó, pocotó", algo que funciona na música como o seu, digamos, refrão. A malemolência exacerbada e tresloucada do travesti rende-lhe o oportuno apelido de "Lacraia", e é ele que, ao contrário do Serginho, funciona como quase mestre de cerimônia às "modelos" que se contorcem repetidamente em um palco abundante de mulheres em shortinhos cavados. Ponto para o cine grafista que dá zoom e praticamente nos concede a imagem clara dos lábios vaginais das animadas dançarinas.

"Meu Deus, que baixaria", poderia dizer minha avó. "Isto não é música", poderia dizer a sua avó. A mesma expressão, no entanto, utilizada para rotular músicas estrangeiras cujas letras elas não compreendem. Não, isto não é uma defesa destas músicas. Mas também não é uma acusação. Independente de se utilizar de comportamentos incontestavelmente sexuais para alçar-se ao sucesso, sempre existiram músicas que, em maior ou menor escala, cresceram nas paradas com forte tendência ao questionamento de sua qualidade. E, eu acho que neste ponto, mais do que o apelo sexual, é a qualidade, ou não, da música que está em jogo. E qualidade, sabemos, pode e deve ser medida por conhecedores musicais, mas sucesso é o público consumidor quem pode atri buir, conforme seu gosto lhe apetece. Se formos discutir os gostos alheios, vamos esbarrar em preconceito e concepções antecipadas. Como autor deste texto, posso dizer livremente que detesto música sertaneja, pagode, axé e todos estes geradores de música de farto consumo popular. Mas devo, no entanto, respeitar quem delas goste.

O Brasil é engraçado. Sente-se compelido com uma necessidade extrema em alçar ao posto de gênios os primeiros músicos que surgem com propostas um tanto diversas do maistream. E nisso, vai tempo que todos aplaudem Caetano Veloso como gênio até mesmo se ele regravar o "Parabéns a você". Da mesma maneira que se viu surgir uma Marisa Monte americanizada que conquistou a todos com seus ótimos dotes vocais e que acabou estabelecendo-se na cena musical com bons discos e boas composições, hoje talvez seja contestável que, juntando-se aos outros "gênios" Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, ela tenha gravado um disco que para mim pouco se diferencia dos sucessos do carnaval baiano. Mas foi o disco mais vendido do ano passado. Somos invejosos do sucesso alheio? Criticamos demais a tudo e a todos? Ficamos mais ignorantes quando damos espaços para que MC's surjam com sua simplicidade da periferia a abocanhar algum dinheiro por algum tempo com seus sucessos questionáveis? Na realidade, eu fico feliz que isto aconteça. Se, por acaso, eu vejo ou escuto, é porque eu gosto. Opção eu tenho. Nem que seja desligar a TV ou mudar a estação do rádio. Melhor do que adotar a indignação de uma velha defensora da Tradição, Família e Propriedade e bradar a plenos pulmões que o mundo está perdido. Perdido, nada. Quanto mais puderem se beneficiar desta festividade enlouquecida e constante que parece dominar o país, mais existirão contrapropostas esforçando-se em qualidade para tentar modificar a situação vigente. E contrapropostas que, se merecidas forem, não devem existir apenas para encher a boca de velhos críticos maravilhados, mas também para serem consumidas à grande por todos que, com elas se identificarem. O que, no entanto, pode ser um pouco perigoso. Porque basta vender muito para se tornar, aqui, repulsivamente popular. Muita ranhetice e pouca tolerância em um país que já teve que passar por supervisão para cada canção que queria ganhar as ruas. Se, em algum lugar, alguma ou muitas pessoas se deliciam com o batidão que faz fundo para o "pocotó, pocotó" e outras se revoltam, é só lembrar-se que, com a mesma rapidez com que veio, também vai. E daí, é esperar o que surgirá então e será a bola da vez.

Nota do Editor
Alessandro Garcia é escritor, publicitário e pode ser encontrado no Suburbana.

Alessandro Garcia
Porto Alegre, 7/3/2003

 

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