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Sexta-feira, 11/4/2003
Breve História do Cinismo Ingênuo
Alexandre Soares Silva

Criancinhas olham cinicamente pra você, com cara de Peter Lorre vendendo passaportes em Casablanca, e dizem as verdadeiras razões da guerra. O duro é ver cinismo saindo de uma boca manchada de chocolate.

Quanto mais ingênuos, mais cínicos: é uma regra. Isso porque os ingênuos estão acostumados a ser enganados em todos os cantos. Compram remédios pra emagrecer, tomam Confrei, pagam dízimo, pagam prestações sem nunca perceber os juros, são enganados no troco, entram em pirâmides. São roubados de tantos lados ao mesmo tempo, que se enfezam, passam a olhar feio pra todo mundo, e ficam com a certeza que todo mundo está tentando enganá-los. Até as nuvens.

Você diz que as nuvens são bonitas, e eles olham cinicamente pra você, como se só você não soubesse que canalhas são as nuvens. Especialmente os cúmulos-nimbos, esses são os piores, os líderes dessa roubalheira toda. Fica esperto...

Nada de novo nisso. Se você lê Ana Karenina, vai reparar que Liêvin está sempre querendo tomar alguma medida a favor dos mujiques que trabalham em suas terras. Lá vai Liêvin tentar explicar as mudanças que quer fazer na propriedade. E ele é sincero: se sente culpado pela renda que tem em relação à renda dos mujiques, e quer honestamente melhorar a condição de vida deles.

Os mujiques ouvem de cara desconfiada, vão ficando zangados, xingam. Aqui, ó, que eles são tão ingênuos que vão acreditar num ato desinteressado. Se o patrão propõe mudanças, obviamente há algum lucro pra ele em algum lugar. Recusam as mudanças. O próprio Liêvin vai ficando zangado com as objeções. Não é possível, pensa, que sejam tão estúpidos. Mas sim, sempre é possível.

Tenho a impressão que quando Jesus ressuscitou Lázaro, Lázaro ficou olhando desconfiado pra ver where was the catch. A família de Lázaro comentando sobre os motivos pecuniários de Jesus. Olhando cinicamente uns para os outros e murmurando sobre o capital essênio ou os interesses das grandes casas de carpintaria. Todos com as caras mais ingenuamente cínicas do mundo.

"É simples, se você pensar bem. Lázaro morto, a quem beneficia? É só o preço de um caixão. Mas Lázaro vivo, é cadeiras e mesas pruma vida inteira..."

Agora, a guerra.

São cínicos, em primeiro lugar, em relação a todas as guerras. O mais bobinho molequinho de colégio olha pra você com profunda piedade nos olhos e fala dos horrores da guerra de verdade, no mundo real, cara, como se ele fosse um veterano mutilado da guerra dos cem anos, e não um molequinho cheirando a vic-vaporub. Mas o mundo real pra ele, tanto quanto eu possa saber, é o filme Platoon.

Um filme como Platoon tem uma só verdade: que a guerra é feia. Mas Homero sabia duas verdades: que a guerra é feia, e gloriosa, de alguma forma. Mas já não se pode mais dizer isso.

Em segundo lugar, são cínicos com relação aos motivos desta guerra. Têm todos aquelas caras de bebezinhos profundamente vividos.

Desconfio, aliás, de qualquer motivo escuso de guerra que até molequinhos, mujiques e Sean Penn são capazes de compreender.

Expressões que só aparecem em textos antiguerra
- Arrogam (os EUA sempre se arrogam)
- Bush Pai (ou Bush o Pai)
- Bush Filho (ou Bush o Filho, ou Bush Júnior)
- Bushinho
- Bushizinho
- Cachorrinho (do Império Ianque: Blair. Ver também: poodle. Schnauzer. Sharpei.)
- Caubói (se referindo ao Bush)
- Estado títere (se referindo ao governo do Iraque pós-guerra) manipulado pelas forças unidas do capital sangrento (se referindo ao Burger King. Ah, perdão, esqueci que por algum motivo o Burger King não é ideológico, só o McDonald's é ideológico. Pizza Hut também não é ideológico.)
- Estadunidenses (frisar bem, para que não se confunda com americanos, que o autor do texto faz questão de exclamar - está preparado? - que somos todos nós.)
- Gângster (Bush)
- Ianque
- Império (os EUA são um Império Ianque; ou querem ser um Império Ianque - ainda não foi decidido se já são ou querem ser)
- Imprensa parcial (americana)
- Imprensa imparcial (Al-Jazeera)
- Massacre (em Bagdá. Em Israel, houve vítimas. Entre as tropas da coalizão, deve-se dizer, sorrindo: baixas crescentes).
- Precipitada (a invasão do Iraque. Ver: mal-planejada por um império arrogante que se arroga etc )
- Também não sou a favor (do Saddam; dizer em seguida: Mas acho que deviam ter buscado outros meios... Importante: não explicitar quais outros meios, para não ser alvo de zombarias. Murmurar alguma coisa sobre "as leis internacionais" - mesmo se você não sabe nenhuma delas.)

Antiamericanismo
O antiamericanismo está na moda, como o antisemitismo estava na década de trinta, e pode acabar igualmente mal (é típico da humanidade escolher sempre os povos mais legaizinhos pra implicar). Na tevê todo mundo odeia americanos: a professorinha com lábio leporino, o VJ muderninho, a garota bonitinha, o homem-sanduíche de tenros sentimentos. E chego em casa e vejo uma tia minha, que sempre achei suave, falando dos americanos, com ódio; e quando eu disse que ela estava com ódio, ela disse que não estava com ódio; só não gostava de gente sem-educação, prepotente, arrogante, com o rei na barriga, metida a besta, cruel, assassina, violenta, mentecapta, idiota, desgraçada, imunda. Mas ódio, não. Tentei dizer a ela que, sem os americanos, estaríamos todos lendo histórias edificantes sobre o camponês Ivan e seu magnífico, lustroso trator. O fato em si foi grandiloqüente, então me deixem ser grandiloqüente: os estados unidos salvaram o mundo. Pelo menos duas vezes, last time I checked. Não só isso como emprestam dinheiro para a minha tia ter estrada para ir à praia, desenvolvem remédio para minha tia controlar a osteoporose, e fizeram filme da Doris Day pra minha tia ver na tevê. Digo isso e a minha tia desvia os olhos, fica olhando pra parede, com ódio. O antiamericanismo está realmente no ar. Quanto a mim, lealdade para sempre ao país que me deu Columbo, Jornada nas Estrelas e Buffy.

Aforismo
O talento devia ter o talento de se esconder um pouco.

Nota do Editor
Alexandre Soares Silva assina hoje o soaressilva.wunderblogs.com, ondes estes textos foram originalmente publicados.

Alexandre Soares Silva
São Paulo, 11/4/2003

 

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