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Quinta-feira, 13/3/2003
O nascimento de uma nação
Lucas Rodrigues Pires

Para se entender o filme O Descobrimento do Brasil, que foi lançado em DVD pela Funarte, deve-se compreender o contexto político e do cinema brasileiro na década de 1930, no qual seu autor, Humberto Mauro, se insere em papel destacado.

Com a tomada do poder por parte de Getúlio Vargas, em 1930, um novo rumo na política e modelo de Brasil se iniciou. Vargas, em sua grandeza, planejava um governo extenso e, para tanto, com a astúcia que marcou sua administração à frente do país, percebeu a ascensão e a corrente popularização dos instrumentos de comunicação de massa - o rádio, o cinema e, por extensão, a música. Com isso em mente, partiu para uma política que buscasse o apoio dessas classes artísticas, dedicando incentivos e assinando decretos que a favorecessem. Foi dessa leva a decisão de instituir a obrigatoriedade de exibição de curtas-metragens nacionais antes de qualquer sessão, a partir de 1934. Antes mesmo, em abril de 1932, com o decreto-lei n. 21.240, Vargas supria algumas reivindicações da recém-fundada Associação Cinematográfica dos Produtores Brasileiros: redução das tarifas alfandegárias na importação de filmes virgens e impressos, nacionalização da censura e a criação da Revista Nacional de Educação.

A criação do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural foi feita aos moldes do Ministério da Informação e Propaganda nazista, que, entre outras funções, estaria organizando a produção alemã, apoiando e patrocinando filmes e mesmo censurando aqueles com conteúdo subversivo. O DPDC teria como objetivo "estimular a produção, favorecer a circulação e intensificar e racionalizar a exibição em todos os meios sociais de filmes educativos", vindo a suprir outra lacuna, que seria a alma da atuação institucional no cinema - o cinema educativo.

Mas a propaganda governamental na cultura só se mostraria mais sólida após a instalação do Estado Novo. Com o golpe em 1937, Gustavo Capanema, espécie de ministro da Cultura de Vargas, cria-se, no mesmo ano, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), presidido por Edgar Roquette Pinto. Mas antes mesmo de sua oficialidade, o INCE já agia na forma de uma comissão instaladora desde março de 1936. Nesse esquema, foram produzidos 26 filmes até a efetiva abertura do instituto. Para sua idealização, houve intenso contato com organizações similares que obtiveram enorme sucesso na Itália (a LUCE - L'Unionpour la Cinématographie Éducative) e Alemanha (U.F.A., que produzia os Kulturfilms, filmes documentais e didáticos). No início da década, produtores exigiam e cobravam do governo postura semelhante à adotada por esses países, juntamente com URSS, que favoreciam e priorizavam a produção local em detrimento do cinema estrangeiro, já dominantemente americano. Elogios à política audiovisual nacionalista de Hitler e Goebbels era uma constante, como forma de legitimar algo do mesmo gênero em território nacional. A revista Cinearte, popular publicação sobre cinema, na época editada por Adhemar Gonzaga, um dos defensores e realizadores do cinema local, ressaltava os inegáveis benefícios que a Alemanha recebeu sob os pontos de vista da unidade de seu povo, da reconquista da confiança em si mesmo e, dentro de diversos outros, no campo cultural, com a manutenção de suas tradições.

Essa mesma idéia guiava Getúlio Vargas - criar a imagem de um Brasil civilizado, grandioso e disciplinado. Sua atuação se voltou à manutenção da ordem social, e um dos meios para isso era através da domesticação dos meios de comunicação. O samba e a exaltação do malandro e dos morros eram combatidos. Através de concursos e até da censura, uma nova forma de samba era proposto, algo ligado à exaltação do trabalho, da vida pacata e das virtudes do homem trabalhador. Os sambas enredos das escolas de samba começaram, nessa época, a tratar de temas nacionais, de exaltação patriótica e nacionalista. O cinema também era instruído a esse lado mais nacionalista. Era recorrente, na ficção produzida no período, imagens de um mundo idílico, sem conflitos de classes, injustiças ou problemas sociais, em que, quando surgia algum problema, estava prestes e a ser solucionado, muitas vezes pelo próprio Estado. Esse tipo de cinema contrastava com os chamados "filmes de carnaval", muito populares em fins da década de 1930 e no decorrer da de 1940, que levavam ao público uma idéia contrária àquela idealizada pelas autoridades do Estado Novo e pela intelectualidade da época, que apoiava o cinema enaltecedor da pátria e educador em política e história.

Roquette Pinto, então, convida o cineasta Humberto Mauro, que já havia realizado produções de sucesso como Braza Dormida, Ganga Bruta e Favela dos Meus Amores, para filmar para o INCE. O convite nasceu quando o cineasta mineiro estava na Bahia filmando O Descobrimento do Brasil, ainda em 1936. A idéia do INCE era clara: utilizar o cinema como instrumento pedagógico e de ensino. Uma frase de Roquette Pinto resume a idéia: "O cinema educativo deve ser no Brasil a escola dos que não tiveram escola".

O Descobrimento do Brasil é um filme de 62 minutos acerca da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. Filmado em 1936 e lançado em 1937, foi pensado para ser um curta-metragem, mas acabou por se transformar num longa. Humberto Mauro assumiu a direção após a saída de Alberto Campiglia do projeto. Com contribuições de Roquette Pinto e Affonso de Taunay, Humberto Mauro modificou o roteiro, inserindo e alterando cenas.

O filme teve produção do Instituto de Cacau da Bahia com o apoio do Ministério da Educação e Cultura e do INCE. Portanto, se foi feito anteriormente ao Estado Novo e sua política de unificação nacional, é certo afirmar que ele traz no bojo a intenção de ser um documento educativo.

Após cenas de mar agitado e da frota no mar, entra a legenda: "A 9 de março de 1500, partia de Lisboa, com destino às Índias, a frota de Pedro Álvares Cabral, sendo rei de Portugal D. Manoel - O venturoso". Desde o início se percebe a intenção clara de ser o mais didático possível. Não é um filme para diversão, mas para instrução, daí o excesso de nomes e informações em tão poucas linhas. Nesse sentido, que poderemos verificar constante no decorrer da obra, O Descobrimento do Brasil se assemelha a um documentário. Ainda mais por não haver nenhum ator famoso ou alguma forma de "romantizar" o episódio. Não há mulheres, com exceção de uma índia que aparece muito rapidamente, ou alguma forma de conflito em todo o filme.

Podemos dividi-lo em 3 partes: a primeira que seria a abertura, quando as caravelas e sua tripulação são apresentadas. Como o espectador já sabe do que se trata o filme (o título diz tudo), percebe-se logo a preocupação de inseri-lo naquele contexto de viagem marítima, com cenas dos marujos, onde dormem, o que fazem, quando acordam e se preparam para o dia etc. As atividades corriqueiras da tripulação e do alto comando tornam-se o destaque. A segunda parte tem início com os aguapés no mar, sinal de proximidade de terra firme. Avistam terra e vêem os nativos na praia os observando. Uma primeira trupe é enviada (Nicolau Coelho) para ver e sondar os indígenas. Daí decorre a vinda de dois índios ao navio e o "diálogo" entre os dois povos. Esta parte intermediária termina com os índios dormindo no chão do navio e os portugueses, carinhosamente, os cobrindo com cobertores. A seqüência final é o clímax, com o desembarque de todos no continente, a preparação e execução da Primeira Missa na nova terra.

Humberto Mauro utilizou-se da famosa carta de Pero Vaz de Caminha para direcionar o filme. É ela que vai "narrar" a aventura, é por ela que Mauro se baseou para inserir detalhes da viagem e para criar a veracidade do contato com os nativos. Nesse sentido, e é explícito pela produção, o roteiro é uma adaptação cinematográfica da carta de Caminha. Em muitas oportunidades, a legenda toma espaço e informa o espectador, principalmente em relação a tempo e localização espacial. Fatos que Caminha deixa a par o rei de Portugal estão nas telas, como a presença de um prisioneiro, Afonso Lopes, e a nau perdida no meio do caminho.

Se a carta de Caminha é a versão mais oficial do descobrimento do Brasil, o filme torna-se, assim, também oficialesco. Tudo em O Descobrimento do Brasil parece perfeito: os marujos não passam mal e não reclamam, Cabral e os demais da hierarquia estão sempre limpos e serenos, nunca se exaltando ou perdendo a postura. Há certo ar de misticismo, como se uma profecia, um destino já traçado por Deus, estivesse a ser realizado. A viagem de Cabral não foi atabalhoada nem exaustiva. Chegaram à terra firme quando precisavam, como se já soubessem daquele paraíso terrestre e fosse questão de tempo para achá-lo.

Outro ponto que se ressalta no longa-metragem é a harmonia com que o contato homem branco/nativos é mostrada. Não há espaço para o antagonismo civilização/barbárie. A relação recém-nascida é cordial, afetuosa até se pensarmos na cena em que Cabral cobre os dois índios com um cobertor, como um pai agasalha um filho, e na benção de Frei Henrique a eles. Não há brigas, desentendimentos, é como se ambos os povos falassem a mesma língua. Eles se entendem por natureza, por mágica em O Descobrimento do Brasil. A língua, a cultura, os costumes não atrapalham. E a religião assume papel fundamental nesse processo, pois é através dela - com a realização da Primeira Missa no Brasil - que, explicitamente, os dois povos estão unidos perante Deus. A cena da Primeira Missa é exemplar: sob a cruz levantada pelos portugueses, todos se ajoelham e rezam. Os índios seguem o ritual português e vão ao chão. Um deles até beija a cruz. A música de Villa-Lobos ressoa límpida, como uma forma de redenção. Ali, naquele instante fundador de um país, os nativos eram absolvidos e encaminhados ao seio da religião. Um novo país surge, com a união de dois povos, harmônico, baseado na fé cristã.

A idéia positivista/cientificista também está presente no excesso de instrumentos. A superioridade de um povo predestinado se mostra no close up à bússola, no ritmo da imagem colada à movimentação de um astrolábio que media a localização e coordenadas. Também no clímax do filme essa idéia aparece. No corte das árvores para a produção da cruz que serviria à primeira missa na nova terra. Novamente, Humberto Mauro focaliza o corte nas árvores, a ritmada pancada do machado nos grossos troncos. Ao mesmo tempo, o olhar espantado dos indígenas frente àquela máquina de derrubar a floresta. Assim, como a irmandade de povos, a nação nasceria também sob a efígie da ciência, unindo conceitos opostos - ciência e religião - em prol de um ideal maior de nação, buscado pelo Estado Novo.

O Descobrimento do Brasil marcou uma virada na carreira de Humberto Mauro. A proposta aqui presente é totalmente diferente daquelas apresentadas em suas obras anteriores. Percebe-se nitidamente o caráter educativo, de querer ensinar e embutir a idéia de uma nação nascida da harmonia e não do confronto, em que a religião é a moldadora direta desse grande Brasil. Podíamos pensar até em uma abordagem romântica e ingênua do descobrimento se não fosse seu contexto histórico de produção, acima descrito. Concluído o filme, Humberto Mauro dedicar-se-ia ao INCE, quase que exclusivamente por 30 anos, mas ainda filmaria produções ficcionais paralelamente ao trabalho "oficial", como foi o caso de O Canto da Saudade, filmado em 1951 em Volta Grande, sua cidade natal. Pelo INCE realizaria, junto a outros diretores, filmes escolares e documentários sobre os mais variados assuntos, todos com fundo educativo e voltados à exibição em escolas e associações trabalhistas. Entre os temas, temos: filmes científicos sobre plantas, aves, peixes e cidades, folclore, reconstituição de episódios históricos do Brasil, biografias, adaptações da literatura nacional (Machado de Assis e Casimiro de Abreu, entre outros) etc. Ficções com fundo ideológico também não faltaram. Argila, de 1940 e com Carmem Santos, é exemplo disso.

Apesar de não ter sido feito diretamente sobre exigências e influência estadonivistas, houve a participação de Roquette Pinto, muito próximo de Capanema e Vargas. Como a idéia que pairava no ar na época era a de um cinema ligado ao Estado, pode ser que o filme tenha sido feito sobre esse fundamento. Se sim, não obteve muito sucesso porque, pelo que consta, o filme não fez grande público, não alcançando o impacto desejado. O Descobrimento do Brasil acabou ficando reservado ao estudo de uma época - a década de 30 - e é encarado como a visão do descobrimento que interessava aos poderosos quando de sua produção.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 13/3/2003

 

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