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Quarta-feira, 12/3/2003
Símbolos e Identidade Nacional
Daniel Aurelio

Certo diário impresso paulista, que outrora fora a síntese de um jornalismo rápido, simplificado e eficiente, e hoje repousa chapa-branca e oco, estampou uma notinha que me fez coçar os neurônios na manhã de domingo carnavalesco.

Um deputado estadual decidiu propor uma lei que obriga o cântico do Hino Nacional nas escolas públicas de São Paulo, hábito que subitamente rememora os tempos de chumbo e opressão da ditadura militar. Claro que figuras de proa do nacionalismo e da moral conservadora se posicionarão favoráveis e haverão de ter sua lógica, aliás tão coerente historicamente quanto o repúdio dos ativistas de esquerda e demais libertários, que certamente não deixarão a pretensa resolução impune.

Nesta batalha bipolar, sobra para quem se interessa por símbolos e identidade, que em geral ficam atordoados e ilhados entre duas certezas insoluveis.

No princípio, a única verdade social verificável era o caos. O conceito de família, célula fundamental da constituição orgânica nacional, não ficava claro, e só quando o incesto tornou-se um insulto à doutrina cristã é que as coisas se alocaram. E a cidade nada mais é senão um conglomerado de famílias sólidas (ver "Política", Aristóteles). Parentesco direto definido e agregado à divisão do trabalho (este outro vetor importante), sociedade posta. Paulatinamente, os Estados foram sendo forjados, ainda de modo tímido, como organizações relativamente pequenas e que pouco interagiam. Somente com as sucessivas revoluções (Industrial e Francesa) é que se pode pensar o ideal de "Estado-Nação", cujo mote seria o apelo unitário em prol do desenvolvimento, que no final das contas, (definiria assim sua matriz retórica) seria interessante para todos os conterrâneos. Alemanha e Inglaterra rapidamente se armaram industrialmente e a França celebrou sua vanguarda política e social. Os EUA, personificação contemporânea desta tese, corria em velocidade constante por fora. Não tardou para que fossem cercadas as divisas, fincado os pendões, criado hinos de exaltação ao orgulho de pertencimento. Padrões universais do conceito de Nação, que remetem respectivamente à idéia egoísta de definir claramente o meu (ou nosso) e o seu (ou o de vocês), ou seja, propriedade privada, e aos nossos sentidos sensoriais de imagem e audição. Nada encanta mais o humano que observar algo que o faça sentir forte, ou uma canção que o identifique com um determinado grupo. Dá-se a isso, pela antropologia,o nome de memória arcaica.

Tanto que, mesmo quem condena gestos excessivamente separatistas, sabe o quando é duro ficar incólume e crítico durante os noventa minutos de um final esportiva em que o Brasil esteja presente.

Fui educado a respeitar a simbologia nacional, representações máximas de minha brasilidade, e é complicado desconstruir essas projeções (estudei meu primário de 1985 até 90, e havia resquícios moribundos da ditadura no seio docente). Procuro lembrar que o alicerce de Hitler eram as maquinações de seu ministro da propaganda (!), Goebbels, hábil manipulador das cores e símbolos germânicos em usufruto da pretensa soberania ariana e que as primeiras providências tomadas pelo império socialista da URSS foram institucionalizar a cor vermelha, a foice e o martelo ("trabalhadores do campo e proletários, uni-vos!" Eis a mensagem a ser captada). A expansão passa necessariamente pela sacralização de ícones. Assim como mitificamos, com extraordinária freqüência, um cidadão-simbolo, nosso grande timoneiro da esperança, que por séculos se apresenta nas mais variadas facetas. Mas sempre com o mesmo potencial carismático.

Os EUA, mestres modernos da dialética dos sentidos patrióticos, são o que são por manterem, sob qualquer adversidade, a premissa da liberdade, democracia e servidão à Deus, a tríade que sustenta sua expansão via artéria dos demais países. Hoje não é mais necessário anexar outros Estados e lavrá-los em cartório; mesmo à distância, com a desfaçatez de paizão metido a moderninho, eles fazem o estrago. E, devemos admitir, é por isso que são saudados como uma potência política, militar, econômica, esportiva e cultural por décadas. O emblema de uma Grande Nação (Estado-Nação e Imperialismo, por definição, confundem-se pelas águas turvas da história).

Aí que mora o perigo: que será que queremos? Ser uma vanguarda mundial, um gigante estruturado nos mesmos moldes norte-americanos? Se sim, devemos realmente nos submeter a lavagem cerebral da identidade, levar a sério em cada gesto o espírito unívoco de um povo, e cantar com lágrimas nos olhos, desde moleque, a comovente melodia brasileira. É lastimável, mas instituições fortes geram Nações fortes; ou será que preferimos viver num planeta só, múltiplo, sem dogmas ou menções de caráter privado, onde a paz possa ser possível numa estupenda e iconoclasta orgia anarquista? Dispensaríamos certas ferramentas constrangedoras, seríamos livres de fato, porém será essa idéia viável no plano da práxis ou mera peça de ficção decalcada do espírito rebelde?

Certo mesmo é que manifestações tribais ou globais não podem jamais serem impostas, pois haverão de causar insurreições por parte de certas facções em seu próprio ventre, e apatia resignada e mortificada de outros. Vários dos famosos artigos federalistas de Hamilton e Madison (base da constituição americana) debruçam-se sobre esta incandescente relação.

É até razoável que o nobre deputado creia nisso e não esteja de todo equivocado (por todas as razões acima abordadas); a obrigatoriedade de um gesto estranho ao jovem brasileiro deste século é que me parece uma bobagem. Tanto pela via utópica-humanista, quanto pela sagacidade prática da política.

Daniel Aurelio
São Paulo, 12/3/2003

 

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