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Segunda-feira, 24/3/2003
Entrevista com o poeta Augusto de Campos
Jardel Dias Cavalcanti

Dedicado ao Galileu, meu filho, que completou um ano

Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta. Foi um dos criadores, junto com Haroldo de Campos e Décio Pignatari, do movimento de poesia concreta brasileira. Traduziu poetas como Cummings, Pound, Maiakóvsky, Mallarmé, Blake, Rimbaud, Valéry, Keats, Hopkins, dentre outros. Traduziu, com Haroldo de Campos, trechos do livro Finnegans Wake, do escritor irlandês James Joyce. Publicou um livro onde reúne ensaios sobre a música erudita contemporânea e lançou o CD Poesia é risco. Os dados acima são apenas um pequeno resumo de uma vida dedicada à poesia, cujo início data do final dos anos 40.

Em todas as atividades que exerce (poesia, tradução e ensaio) Augusto é um exemplo do criador e pensador extremamente apaixonado pelo que faz. Amante da poesia e da música inovadora, não se espanta com a radicalidade dos criadores que ousam experimentar para além do já criado. Ao contrário, comunga em sua poesia e em suas reflexões com esse universo. É ele também alguém que busca a inovação constante.

De Paul Valéry adota a máxima que diz que o trabalho de um escritor deve ser mensurado pelo rigor de suas recusas. Por isso, trabalha pacientemente cada poema e cada tradução; como um joalheiro, busca a perfeição e o brilho que surgem da forma bem acabada. Esse trabalho é notável para aqueles que mergulham nos seus livros. Como uma criança que, descontente com os universos estabelecidos, constrói, desconstrói e reconstrói o mundo a cada nova brincadeira, o poeta Augusto não envelhece nunca: suas invenções estão aí para provar.

Na entrevista que o poeta gentilmente nos concedeu por e-mail, comenta os rumos da nova poesia brasileira, alguns aspectos de antigas polêmicas contra o Concretismo, fala de seu trabalho como tradutor e sobre o seqüestro que a música erudita contemporânea sofre em nossos meios culturais.

1 - Do Concretismo ao Neoconcretismo e ao Poema-Processo a teoria era uma das bases sobre a qual se assentava a poesia que se praticava. O Sr. poderia falar de alguns conceitos que acha importantes para a prática da poesia atualmente? Dentro desta mesma questão, por que os novos poetas não teorizam mais sobre a poesia que fazem?

AUGUSTO DE CAMPOS: Manifestos não são decretos. São projetos. A teoria surge em determinados momentos, como decorrência de um projeto coletivo de grandes transformações. Nasce da prática e vai sendo alterada por ela. Quanto aos conceitos que acho importantes para a poesia, hoje, penso que, entre outros, são relevantes os temas da autonomia da linguagem poética, da liberdade e simultaneamente do rigor de construção poética, da curiosidade formal, da experimentação permanente e da consciência contextual da modernidade e das novas tecnologias, que repotencializaram as propostas das vanguardas do século XX. Mas não é necessário teorizar para fazer poesia. Se os jovens não teorizam é porque não têm o que teorizar. Por outro lado, há uma grande indefinição nesta época de desencantos utópicos, no vácuo do "pós-tudo". Estamos, talvez, numa fase de transição.

2 - O Sr. acredita na possibilidade da criação de uma obra de arte totalmente abstrata, que se constitua como uma linguagem fora da história (esse "pesadelo" joyceano)? A poesia concreta (e a poesia que o Sr. pratica hoje) tentou alcançar, em sua base e em suas buscas, esse abandono à referência histórica?

AUGUSTO DE CAMPOS: Sim, é possível criar uma obra totalmente abstrata. Khrutchônikh, Iliazd e os adeptos do "zaum" (linguagem transmental) da vanguarda russa o fizeram, em maior ou menor grau, com palavras inventadas, assim como Kurt Schwitters, com a sua "ur-sonate" (sonata pré-silábica), ou ainda Gertrude Stein com a linguagem "não-referencial" (empregando palavras comuns dessemantizadas pelo contexto) dos seus "Tender Buttons" (Botões Suaves), De um modo mais geral, a poesia se situa mesmo "fora da história". "É uma viagem ao desconhecido", como escreveu Maiakóvski, poeta mais do que engajado. "O poeta é um fingidor", de Pessoa, poderia ser escrito por qualquer poeta de qualquer tempo ou lugar. Essa é a natureza intrínseca da poesia, que acima de tudo fala do homem e ao homem de todos os tempos e de todas as latitudes. Isso não quer dizer que a poesia não possa abranger a história ou ser referenciada a ela, caso dos CANTOS de Pound, em nossa época. A poesia concreta, embora tendo a autonomia da linguagem poética como um dos seus postulados, e a sua independência do fato histórico como um corolário, não foi infensa aos eventos significativos do seu tempo e do seu país. A produção dos anos 60 é particularmente rica de exemplos de poemas referenciados ao momento histórico.

3 - Segundo Ferreira Gullar, "João Cabral é um poeta que se refugiou na linguagem, mas reinicia a cada momento a tarefa de reaver o mundo perdido; já os concretistas se refugiaram na palavra, mas a tomaram como a 'verdadeira realidade', como fetiche." (In: "Indagações de Hoje". p. 180). O Sr. concorda com essa observação que o Gullar faz do Concretismo?

AUGUSTO DE CAMPOS: É evidente que não concordo. A observação não faz justiça sequer à poesia de João Cabral, que nem se refugiou na linguagem nem perdeu mundo algum, mas simplesmente compreendeu a natureza da linguagem poética e a desvelou em poemas metalinguísticos como "Anti-Ode", a par de enfocar temas sociais, amorosos ou outros em outras obras, sempre com alta densidade vocabular e notável rigor compositivo. Ao contrário de Gullar, ele entendeu perfeitamente os propósitos da poesia concreta, que sempre valorizou, chegando a colocá-la acima até da poesia do Modernismo, em vários depoimentos, de conhecimento público. Ora, qualquer um pode ver que uma das características diferenciais da poesia concreta, relativamente a outros movimentos poéticos de vanguarda, é o fato de ela não renunciar à dimensão semântica. VERBIVOCOVISUAL, ela se afirmou desde o início, com isso significando a ênfase simultânea no verbal, no sonoro e no visual, em pé de igualdade, e não apenas nos dois últimos níveis ou só no primeiro. Não fora assim, como explicar poemas como TERRA, BEBA COCA COLA, SERVIDÃO DE PASSAGEM, ESTELA CUBANA, PORTÕES ABREM, LUXO, os "popcretos", para só citar alguns dos mais ostensivamente referenciais e ideológicos? Mesmo poemas de semântica mais abstrata, como TENSÃO, polarizando som e silêncio, não deixam de configurar arquétipos vivenciais. Outros ainda, de natureza metalinguística, perscrutam a linguagem poética e tratam de expandi-la em novas articulações, até o limite. Mas sempre mantendo o significado. De linhagem poundiana ("precise definition"), a poesia concreta nunca foi "não-referencial". O que propusemos, a par de reivindicar a autonomia da linguagem poética em relação à linguagem contratual, foi uma nova abordagem da poesia, uma sintaxe tempo-espacial, não-discursiva, mais consentânea com os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia do nosso tempo, e uma nova configuração formal, ao mesmo tempo rigorosa e livre, capaz de projetá-la em dimensões interdisciplinares além-verso e além- livro. O que recusamos sempre, como João Cabral, foi a demagogia sentimental e a retórica panfletária em busca de aplauso fácil. Nosso lema foi o maiakovskiano "não há poesia revolucionária sem forma revolucionária." Como eu digo no meu poema NÃO: "humano autêntico sincero mas ainda não é poesia". O resto é ressentimento.

4 - Embora já incorporado aos livros didáticos de literatura brasileira, não existe movimento literário no Brasil que conheça tanta crítica quanto o concretismo. O modernismo de 22, embora atacado no seu surgimento, ao contrário, é agora muito bem aceito (e assimilado) pela cultura brasileira. Que razões o Sr. atribui a essa rejeição e, mesmo, perseguição, ao Concretismo?

AUGUSTO DE CAMPOS: A poesia concreta foi o mais radical dos movimentos poéticos brasileiros, tornou mais difícil escrever poesia, pôs em circulação um repertório sem precedente de linguagens poéticas não visitadas entre nós, traduzidas criativamente do original, da antiga poesia hebraica, chinesa e japonesa às vanguardas - trovadores provençais, Dante e Guido Cavalcanti, poetas "metafísicos" ingleses, Mallarmé, Corbière, Hopkins, Pound, Joyce, Cummings, Gertrude Stein, August Stramm e Kurt Schwitters, Kkliébnikov, Maiakóvski e a nova poética russa, entre outros. Nunca se fez isso antes entre nós. Revimos o percurso literário brasileiro, desmontando preconceitos e promovendo os marginalizados pelas histórias e "formações da literatura" oficiais, como Gregório de Matos, Sousândrade, Qorpo Santo, Kilkerry, Ernani Rosas, Oswald, Luis Aranha, Pagu. E a poesia concreta já está nos livros didáticos, como você mesmo acentua. Quer dizer, até as crianças começam a entender. Ainda há pouco minhas netas, de 9 e 15 anos, vieram me mostrar, em seus livros de estudo, os poemas LUXO e PÓS-TUDO, precisamente os que a crítica universitária sociologóide tentou denegrir há quase 20 anos atrás. Relato isso não pare me vangloriar, mas para pôr em evidência o abismo que separa grande parte da crítica do trabalho criativo. É claro que tudo isso provocou e ainda provoca muita inveja, irritação e medo. A renitente perseguição de alguns poetas sem "fair play", de certa parte da crônica jornalística e dos redutos mais conservadores universitários é lamentável, mas é compreensível e é sinal de vitalidade da poesia concreta. Que continua a provocar e a despertar reações apaixonadas, pró e contra.

5 - O que leva o Sr. a traduzir mais do que a escrever e publicar sua própria poesia?

AUGUSTO DE CAMPOS: O que me interessa acima de tudo não é a "minha" poesia, mas a poesia, "tout court". Gosto do convívio com os outros poetas, os poetas que admiro, e traduzi-los, converter os seus poemas originais, de outros idiomas, em poemas de língua portuguesa, é uma forma de dialogar e aprender, celularmente, com eles. A minha própria poesia passa por um crivo muito severo de auto-crítica e não sinto nem compulsão para criá-la nem pressa em publicá-la. Entre VIVA VAIA (1979) e DESPOESIA (1994) passaram-se 15 anos, e agora mesmo, quando preparo o meu novo livro, vejo que já transcorreram 9 anos. Acho inútil contribuir para inflacionar o mundo dos livros, acreditando com Fernando Pessoa, que "cada homem tem pouquíssimo que exprimir e a soma de toda uma vida de sentimento e pensamento pode, por vezes, inserir-se no total de um poema de oito linhas." Contento-me com a elaboração de alguns poucos poemas por ano. Não forço a barra. Sou muito exigente. E mesmo assim, a minha produção, talvez porque eu tenha atingido idade avançada, já ultrapassa quantitativamente, de muito, a de maravilhosos poetas como Arnaut Daniel, Mallarmé, Rimbaud, Cesário Verde, Sá-Carneiro e tantos outros, mestres e inventores, cujo pequeno acervo de obras poéticas vale mais do que centenas de grossos tomos de poesia.

6 - O Sr. tem um grande apreço pela música erudita contemporânea (da Escola de Viena até compositores recentes como Berio e John Cage, dentre outros). De que forma a frequentação a essa música interfere no seu fazer poético ou na sua reflexão sobre a poesia?

AUGUSTO DE CAMPOS: É evidente que a música, e a música erudita contemporânea em particular, exercem grande influência sobre a minha poesia. POETAMENOS não teria existido, como tal, sem a minha paixão pela música de Webern, para mim o maior compositor de todos os tempos. As aventuras exploratórias dessa produção musical, de grande teor inventivo - marginalizada pelos meios de comunicação - estimulam a minha curiosidade e me instigam às vezes tanto ou mais do que a própria poesia.

7- Existe hoje nas salas de concerto brasileiras o que se poderia chamar de sequestro da música erudita do século XX. Não existe um projeto de tornar pública (ou visível) essa música. Continuamos anos a fio ouvindo o mesmo repertório musical. Por que o Sr. acha que essa música ainda não é executada sistematicamente como, por exemplo, o repertório dos séculos XVIII e XIX?

AUGUSTO DE CAMPOS: A culpa é em grande parte dos meios de comunicação, que não cumprem, como seria desejável, o seu papel de mediação e de informação. Dão um destaque desproporcional à moda ou a música popular de consumo, mas não noticiam e não apresentam com destaque e com glamour as propostas da música do nosso tempo. Também os patrocínios culturais continuam a privilegiar a música de consumo, justamente a que não necessita de apoio financeiro para sobreviver. Dessensibiliza-se e desestimula-se a curiosidade do ouvinte. Acuados diante do distanciamento do público, produtores culturais, orquestras, maestros e concertistas se apavoram e atuam com uma timidez excessiva, autolimitando-se ao repertório mais surrado dos séculos XVIII e XIX, na expectativa de satisfazerem a platéia fugidia e os financiadores gananciosos. Uma triste história de desinformação e acovardamento, que colocou lamentavelmente entre parênteses e entre paredes a música contemporânea - afinal, a do nosso tempo - assim como a de outros tempos, como a grande música de Machaut, dos polifonistas da Renascença ou dos madrigalistas dos séculos XVI e XVII.

8 - Antes da tradução de trechos de Finnegans Wake feita pelo Sr. e por Haroldo de Campos não havia outra versão desta obra de Joyce. O que o Sr. está achando da nova tradução que está sendo por feita por Donaldo Schüler? Qual a importância do aparecimento desta tradução para as letras brasileiras?

AUGUSTO DE CAMPOS: Acho louvável e meritório o empreendimento de Donaldo Schüler. Certamente há de contribuir muito para o entendimento e a divulgação da obra de Joyce entre nós. Trata-se, porém, a meu ver, de uma tradução extensiva, menos exigente ou mais informal do ponto de vista estético, um projeto diferente do nosso, que é mais seletivo -tradução intensiva, onde alguns dos fragmentos mais belos do FINNEGANS WAKE são burilados microesteticamente em termos de ritmo, achados verbais e equilíbrio sonoro, de modo a produzir equivalentes criativos da linguagem joyceana em língua portuguesa, com máximo grau de poeticidade.

9 - A publicação de poesia no Brasil parece ter aumentado e uma nova geração de poetas tem surgido. O sr. acompanha essa produção? Percebe alguma característica marcante nesses poetas?

AUGUSTO DE CAMPOS: Sempre foi grande a publicação de poesia entre nós, ainda que em pequenas tiragens e por pequenas editoras, muitas vezes financiada pelos próprios poetas. Não tenho como acompanhar em detalhe toda essa produção. Mas, no meio de muitas tentativas menos felizes, surge sempre alguma coisa interessante. Deixando de lado, por desprezíveis, alguns xiítas do verso, que querem voltar a poéticas conservadoras, prémodernistas, com pés quebrados e insultos dobrados, o que vejo é uma produção majoritária, mais conformista ou conformada, que tenta encontrar uma pós-voz sob os parâmetros da dicção drummond-cabralina, e uma corrente minoritária, mais experimentalista, que vai dos poetas pós-concretos, de linha verbal, "logopaicos" - como diria Pound -, aos poucos, "melo" e "fanopaicos", que começam a desbravar a terra semi-incógnita da linguagem digital. Tenho naturalmente simpatia especial pelos mais inquietos, aqueles que experimentam novos caminhos, dando continuidade à "revolução permanante" das vanguardas, os que se aventuram por criações interdisciplinares e os que tentam responder, no livro ou fora dele, à provocação das novas tecnologias. Mas longe de mim querer ditar normas. Que cada um faça a sua mágica. Com os meus melhores votos.

Um poema de Augusto de Campos:



Pós-tudo (1984)

Para ir além:

www.uol.com.br/augustodecampos




Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 24/3/2003

 

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