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Quarta-feira, 26/3/2003
Ânsia
Rennata Airoldi

Palavras, sons, pensamentos. A mente humana não pára. Nosso pensamento não pára. Nosso raciocínio não pára. Um vômito de palavras, um mal-estar constante. O diálogo já não existe mais. As pessoas conversam e não se escutam como se estivessem isoladas em um universo próprio. Ver, mas não enxergar. Escutar mas não ouvir, falar e não entender. O raciocínio excessivo do homem moderno não o permite viver, não o permite amar, não o permite ser feliz. Somos todos reféns de nossos próprios medos. E quem tem coragem de contestar?

Angustia? Ansiedade... essas e muitas outras sensações provocam de maneira direta e cruelmente o espectador que assiste à peça Ânsia, de Sarah Kane, com direção de Ruben Rusche. Sara Kane foi autora inglesa do fim da década de 90 que traduz em palavras, como poucos, toda a neurose do mundo interior do ser humano. A consciência que julga, que estimula e, ao mesmo tempo, massacra o próprio indivíduo. Em cena, quatro personagens sem nome, representam quatro arquétipos humanos. No cenário, verdadeiras catacumbas envolvem e isolam as "personas" que vivem intensamente os limites de cada situação colocada através de suas palavras.

A princípio discursos desconexos que vão se relacionando e se completando lentamente. A atuação é um limite extremo entre a contenção física do corpo e a explosão da ação vocal. Este estranhamento é perfeitamente coerente com todos os detalhes que compõe a unidade da peça. Tudo soma. Figurino, cenário, direção, atuação, trilha sonora, luz. A grande dificuldade fica por conta do trabalho dos atores que, em cena, despejam o texto tendo que, ao mesmo tempo, casar a velocidade da fala (muitas vezes não há pausa), as interferências mútuas nos discursos alheios, a dicção e o volume. Apesar de pequenas falhas neste mecanismo e alguns detalhes nas transições cênicas, tudo está direcionado para que se tenha uma execução milimétrica, como se existisse um maestro à frente desta grande orquestra.

Isso porque a estréia de qualquer peça contém, em si, milhares de elementos externos que interferem diretamente no seu andamento. Nada como uma boa temporada e a presença do público para acertar as arestas. Esta reflexão cabe, pois, sem dúvida, é uma árdua tarefa escrever sobre algo que naturalmente fala por si. Creio que é um trabalho não só ousado mas necessário, uma vez que reflete sem pudores o homem de hoje e as suas relações. Ousadia aqui não é no sentido de inovar ou chocar, mas no sentido de expor a realidade nua e crua. De todas as obsessões e neuroses que carregamos ao longo de nossas vidas. Na peça, os personagens são "vividos" respectivamente pelo atores (digo "vividos" pois a relação entre o ator e a ação que ele realiza é muito intensa): Laerte Mello, Nadia de Lion, Bruno Costa e Solânia Queiroz.

A peça é determinada o tempo todo: um pulso e uma respiração. Um momento de descanso, um momento de adrenalina. Uma quase "taquicardia" toma conta dos atores atingindo assim a platéia. Não importa entender cada palavra e ou até mesmo formar uma "historinha" lógica com um início, meio e fim. É um corte no pensamento, um momento de um diálogo. O que ocorre é que o arroubo todo da cena leva o espectador a nocaute no momento em que ele se reconhece numa das figuras patéticas, covardes e inertes presentes ali, no palco. Surge aquela indesejável constatação: "Este sou eu!"

Ânsia está em cartaz no Centro Cultural São Paulo, na sala Jardel Filho. Sextas e sábados às 21hrs., e Domingos às 20hrs. Até o dia 20 de abril. O Centro Cultural fica na R. Vergueiro, 1000 e o telefone para contato é: (11) 3277-3611.

Para maiores informações sobre a peça, visite o site:
www.geocities.com/ansia_sarahkane

Rennata Airoldi
São Paulo, 26/3/2003

 

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