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Sexta-feira, 21/3/2003
Sangue, Carne e Fritas
Urariano Mota

Imaginamos que existam infinitas maneiras de falar sobre a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque. Quase todas, no entanto, passam pela figura do Sr. Bush.

Ainda que nos detivéssemos no início desse primeiro parágrafo e estranhássemos a palavra "guerra", que pressupõe um conflito, uma luta entre verdadeiras forças, um ringue de dois pesos pesados, ainda que estranhássemos o uso de "guerra" onde se deveria dizer "massacre", ainda assim o parágrafo correria pela pessoa do Sr. Bush. E já aqui, ao pular a primeira estranheza, como se superada fosse, uma segunda nos assalta. Pois ao escrever "Bush", escrevemos-lhe antes "figura", "pessoa", "senhor". E nada mais impróprio. Se ele é figura, é algo borrado, borrado porque a definição da sua imagem é para a humanidade um pesadelo. Se ele é pessoa, deveríamos igualmente chamar pessoas às feras, que, sejamos científicos, têm uma humanidade que não encontramos no... não o sabemos, naquilo que preside os Estados Unidos. Se ele é senhor, como dizê-lo? Chamamos igualmente senhor ao porrete e à sua ameaça sobre as nossas cabeças? Se há cacetes com pregos na ponta, queremos dizer, se há mísseis, se há bombas sobre cidades chamamos de senhor, então está tudo bem, digamos com todos os all rights, Bush é um senhor.

Essa estranheza, essa ida e volta em busca do sentido das palavras, se dá porque nessa ... "guerra", nesse massacre, as palavras foram reinventadas, ou melhor, assim como o caos que essa carnificina fará nascer, assim como a noite de Bagdá onde luzem os mísseis, como estrelas cadentes que em vez da queda por entre a atmosfera caem em paralelas curvas ao solo antes da explosão, pois assim como na noite primeira quando a humanidade ainda não era, nessa "guerra" as palavras se anunciam como se ainda viessem a ser inventadas. Pois tão estranhas ficaram. Tão esquisitas, tão deslocadas de sentido. Por exemplo, fala-se que Saddam Hussein, o tenebroso ditador, o Mal, o Terrível Saddam, representa uma ameaça à paz mundial. Estamos todos loucos, idiotas, ou perdemos todo o significado das coisas mais comezinhas? Sim, ameaça à paz mundial, sim, mas com que armas? Certamente que não com aqueles fuzis por ele erguidos para os céus. Sim, isto, e o que dizer de suas armas atômicas? - Sim, mas antes, se é assim, não estariam os Estados Unidos a se referir à Coréia do Norte? E aqui, num breve lapso de memória, esquecemos que o território norte-americano não se localiza bem na América do Norte. Sim, deve ser, porque os Estados Unidos da América do Norte se irradiam de Washington a qualquer lugar do planeta. Ou melhor, para todos os lugares da Terra, que, salvo engano, é propriedade norte-americana.

Mas façamos um esforço para não afundar nessa estranheza, que nos leva para uma digressão. Nem que seja para cair em outra, como esta: o Sr., senhor naquele sentido do porrete, o Sr. Bush, em seu discurso de paz de 48 horas, desejou que os soldados do Iraque não lutassem contra o exército invasor dos Estados Unidos. A essa entrega, espontânea, de armas ele definiu como um ato de não-defesa de um regime moribundo (e imoral !). Muito bem, compreendemos, compreendemos ao nível da idiotia que ele nos quer impor: Bush, quando invade o Iraque, defende a liberdade, vocês vêem, já os soldados iraquianos, quando bravamente defendem a sua terra, batem-se por um regime de um tirano, não se batem? E por isso devem entregar suas velhas armas aos libertadores, de preferência beijando os altos coturnos da libertação, curvados como se se dirigissem a Alá, em prece e saudação. Compreendem? Sim, digamos que sim. Se assim compreendemos, compreenderemos então mais ainda: no seu ultimátum de 48 horas, o Sr. Bush declarou que os iraquianos não deveriam destruir seus poços de petróleo, porque deveriam guardá-los para o bem do povo do Iraque. Compreendem a medida da generosa preocupação? Se acreditarmos em suas palavras, ou melhor, se as aceitarmos no nível que o Sr. Bush ordena que as compreendamos, o exército norte-americano invade o território das segundas reservas de petróleo do mundo para beneficiar o povo iraquiano! Se a esse nível compreendemos, não precisamos olhar para a cara do Sr. Bush, e se não a olhamos, não lhe vemos o ar cínico, arrogante, de desprezo para o mundo que não for norte-americano branco classe média de direita. Ou então digamos que, se não a olhamos, não vemos que sua cara expressa um esforço de abarcar maior humanidade: desprezo somente para o mundo que não for pessoas brancas anglo-saxônicas.

De redefinição em redefinição, de estranheza em estranheza, chegamos à Operação Liberdade do Iraque. Tamanha estupidez nos deixa semiparalisados. Dá-nos vontade de fazer um largo branco na página e encerrar o escrito, tamanho é o abuso. Antes dessa "Operação Liberdade...", o Sr. Bush já nos presenteara com uma "Guerra Preventiva". Sabem o que é isso? - Guerra preventiva é aquela que um troglodita nos faz, quando nos planta já, de imediato, um soco na cara, porque suspeita que num remoto futuro nós poderíamos encará-lo com independência. E nessa guerra, nova, arbitrária, o Neandertal é quem determina o inimigo, naturalmente fundado em razões de saque, rapina, cobiça. Assim fundado, parte para a Guerra Preventiva, que vem a ser a Destruição Prévia do Dono da Riqueza, prévia porque antes de o próprio dono da riqueza crescer na definitiva posse.

E atingimos enfim a sistemática mentira. Tamanha é a sua falta de escrúpulos, tamanho é o seu reacionarismo, que o Sr. Bush não avermelha nem de vergonha. Que lhe importa declarar que procura o terrorista lá no Iraque? Nada demais que a imagem do terror, como o seu nome, como o seu significado, sofra um novo deslocamento. Pois enquanto o Sr. Bush caça o terrorista lá no Oriente, o real e o virtual terror se acham no Ocidente, mais precisamente em frente a ele, Sr. Bush, em qualquer espelho da Casa Branca.

Então fiquemos assim acordados, aprendamos de uma vez por todas: o Sr. Bush quer destruir poderosos arsenais no Iraque, ainda que os jornais noticiem que o povo iraquiano zerou todo um arsenal de desesperadas armas, os tranqüilizantes, nas farmácias; o Sr. Bush quer destruir o Mal, os maus e seus rebentos, enquanto o resto do mundo sabe que as mulheres grávidas do Iraque, para que não venham a morrer sem assistência, na semana da invasão, fazem cesarianas em massa, para que rebentem logo seus frutos aos 7 meses; já os mais crescidos, as crianças que ainda não têm idade suficiente para saudar o invasor à altura, as crianças se escondem debaixo da cama, se escondem em armários, na ingênua busca de proteção dos mísseis. Só lhe falta, Sr. Bush, em seu poder de império, mudar o próprio título deste nosso artigo. Em lugar de Sangue, o senhor ordenaria que se pusesse Ketchup. Em lugar da Carne, cozida pelas bombas, o senhor poria Hambúrguer. E em lugar de Fritas, francesas, o Sr. já sabe, seria posto o genial nome de Fritas da Liberdade.

Mas o senhor deve atentar que falsos nomes não mudam a natureza das coisas. Eufemismos não mudam o crime que a sua cobiça e estupidez cometem. Disfarçam-no, apenas.

Urariano Mota
Olinda, 21/3/2003

 

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