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Segunda-feira, 11/4/2005
Eu escrevo na internet com caneta tinteiro
Julio Daio Borges

É verdade; eu escrevo à mão. Pode ser absurdo para quem publica na Web, mas assim é que é. Nunca foi arcaísmo: nunca foi um hábito adolescente que eu mantive; foi uma escolha madura. Comecei, claro, como todo mundo à mão, passei para o computador, escrevi anos nele, mas, de 2000 e pouco pra cá, achei que a máquina estava atravancando minha relação com o texto. O imperativo da forma, na tela do computador, me obrigava, por exemplo, a soltar todos os parágrafos iguais (todos do mesmo tamanho). Hoje, não; hoje sai como sai. Mais natural. Existe um problema aí: quando me encomendam não-sei-quantas laudas, pode sair de qualquer tamanho – mas eu, volta e meia, acerto na mosca; como quem acorda na hora certa sem despertador. Mas você sabe, estou divagando.

Falar sobre escrever é quase como parar de respirar para explicar como é respirar... Não dá. Ou dá; mas é antinatural. Eu escrevo assim e pronto; nunca parei pra pensar. Mentira: parei, sim. O que um escritor (ou escrevinhador, meu caso) mais faz é pensar e repensar como faz. Ou como não faz. Ou como fará. Sei lá.

Desde 1990-e-alguns já passei, obviamente, por várias fases (mas não sei se você quer saber disso agora). Um dos maiores medos de todo escritor é ver a fonte secar. Não me comparo, claro, a um romancista caudaloso como Hemingway, mas tenho meus medos desde as primeiras crônicas. O medo talvez não seja o de parar de escrever, de súbito; mas, sim, o de soar banal, besta, desinteressante... e continuar escrevendo sem parar. Isso é muito pior do que a morte súbita: porque é você depondo contra você mesmo; é você tramando contra o próprio legado.

Então depois de terminar um texto muito bom, passada a euforia, vem o temor: Conseguirei escrever outro? E mais outro? E outro mais? Até quando? Estou atingindo meu ponto de inflexão? Sofrerei com a decadência após os 30 anos? E após os 40? E depois?

Outro medo de todo escrevinhador contumaz, principalmente jornalista, é o de estar se desperdiçando em formas consideradas menores. O que são “formas menores”? Jornais, revistas, sites, blogs. E “maiores”? Literatura, of course.

Você vê aquela idéia genial ir embora num texto de baixa extração e se pergunta: Que droga, por que não usei isso num conto ou num romance?

Acontece que todo mundo acha – jornalistas, em maior grau – que nunca está preparado pra escrever literatura. Ou que está. (Não sei o que é pior.)

Eu, por exemplo, vivo achando que vai chegar uma época mais calma, em que vou poder trabalhar regularmente meus temas etc. – e produzir algo de válido. No limite, essa hora nunca chegará. Então precisamos começar logo. Quando? (Quando eu começar, eu te falo, tá?)

Outra preocupação, não medo, é tentar organizar a rotina para trabalhar mais. Já escrevi em todas as situações. Em todas. O J.D. Borges, por exemplo, escrevia na hora em que dava. Na hora do almoço; no andar de cima do McDonald’s. À noite; depois do expediente. No carro, olhando, no estacionamento, a paisagem. Entre uma ordem do chefe e outra. Depois das 6 da tarde; na própria baia; no próprio computador...

Não sei qual é o meu melhor horário. Possivelmente de manhã. Mas passei muitos anos achando que fosse à tarde. As tardes são muito valiosas, em termos de trabalho, para desperdiçá-las escrevinhando... Você entende o que eu falo? Acho que não. Digo que o business, no caso do Digestivo, urge e eu não posso me dar ao luxo de despender uma tarde rabiscando folhas – quando poderia estar em reuniões, fechando parcerias, prospectando clients...

Esse é o valor que, em sociedade, damos ao trabalho de escritor.

Como sempre me dividi entre atividades sérias e outras não tão sérias, não sei como seria se eu só escrevesse. Provavelmente não seria; porque eu não sei ser de outra forma (chavão).

Isso se liga a uma crença que eu tenho muito arraigada. O escritor precisa ser outra coisa; e, não, só escritor. Precisa ter uma profissão; precisa ter outra atividade. Isso de escrever, só, é um problemão. Para mim, escrever é fuga, é evasão – e eu não concebo uma vida que seja fuga, evasão. Como é a de muitos escritores.

(Quantos você não encontrou que viviam – literalmente – no mundo da lua?)

E como você faz quando têm problemas?, alguém poderia me perguntar. Não paro, vou fazendo. Já me reergui de uma depressão depois de um texto. (Como meia-hora ou uma hora de exercício físico devolve a disposição ou dissipa o aparente cansaço do corpo.)

Geralmente é a primeira frase que puxa as demais. No caso das notas (Digestivos). No caso dos textos (Colunas), são os títulos. Os títulos vêm antes de tudo; e ficam rodando minha cabeça, às vezes, por semanas. Anoto quando chego a um título bom. E antes de começar, a escrever longo, anoto as idéias principais, em tópicos – para a massa não desandar.

Se já me perdi? Claro que já me perdi. Mas você não percebeu; ou, se for escritor, percebeu já. O texto mais difícil é aquele que se esvai em algumas linhas; ou em alguns parágrafos – tanto faz. Muito difícil retomar; mas mais difícil ainda acabar. E a gente sofre...

Sofro também com a pressão do tempo. Então escrevo um monte antes. Deixo pronto. Duas semanas, um mês antes. Os deadlines me sufocam e eu até sei trabalhar sob pressão (viu, headhunters?), mas não escolho. Traduzindo: eu me adapto a qualquer situação, produzo o quanto for, mas sem a obrigação de ter de publicar amanhã. Isso é horroroso; embora eu tenha trabalhado assim durante anos.

Vai ver que é por isso que hoje eu começo às 7 horas da manhã. Pra começar antes. (Antes do povo.)

Relação com os Leitores... Como publico depois, ou muito depois, os feedbacks não me afetam mais. Ainda que eu, às vezes, ache que eles vêm mais e mais agressivos – à medida que você realiza coisas. Inveja não mata; mas acaba matando.

Contei uma vez para o Carpinejar e ele me deu razão: quando as pessoas vêm sedentas em cima de algo que você publicou, você já está trabalhando em outra – e o comentário não abala. É uma boa receita. Sigam.

Se eu me releio... Eu me releio de vez em quando. Principalmente quando vou lincar para textos anteriores. Em geral, é bom. Não me acho uma droga. Às vezes me incomoda o fato de estar tudo na internet; então me sinto como uma mulher desfrutável. Mas essa sensação passa. (Me convenceu o Martin Amis de que é saudável amadurecer em público. É o que faço.)

Ah, e não entrego nada que não esteja 100%. Pelo menos para o meu gosto. Ao contrário da vasta maioria das pessoas, não consigo publicar por publicar. Nunca fiz; tenho vergonha. (Mais vergonha ainda se fizesse e ninguém percebesse.) Prometo que paro quando notar que preencho espaços à toa. Como já parei antes... O meu compromisso é trabalhar a coisa até o final – antes do desespero, antes da loucura. Depois disso não dá. Mas eu me seguro e, mesmo quando parece que chega o descontrole, depois releio e acho legal. Não sou um pai desnaturado, portanto.

(O desafio de escrever é, também, o de não perder o controle.)

Hoje saio do escritório com um maço de folhas debaixo do braço e descarrego tudo no café mais próximo. Já escrevi entre quatro paredes, mas hoje (nesta fase) me incomoda.

Acho que estou num momento bom de minha produção: os temas vêm e eu, invariavelmente, me resolvo com eles.

Não acredito em quem escreve pouco. Ou em quem quase não escreve. Evidentemente, sei que alguns grandes escritores eram sujeitos esporádicos. Mas eu não entendo essas pessoas.

Se fico entupido, me vem o mau-humor. E o dia perfeito, ou quase perfeito, é aquele em que eu consigo escrever alguma coisa.

No limite, o leitor não importa. E eu poderia escrever para queimar depois.

Por enquanto, vou publicando. E você me falando se continuo bom...

Julio Daio Borges
Segunda-feira, 11/4/2005

 

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