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Segunda-feira, 11/4/2005
Sobre escrever e sobre o Digestivo
Adriana Baggio

Em março, comemorei quatro anos de Digestivo Cultural. Neste mesmo mês, a TV aberta passou O náufrago, filme onde Tom Hanks interpreta Chuck Noland, funcionário da FedEx que sobrevive a um desastre aéreo e passa quatro anos isolado em uma ilha deserta. Coincidentemente, o filme foi tema da minha primeira coluna para o Digestivo.

Na história, Chuck Noland adota uma bola de vôlei (uma das encomendas que escaparam ilesas do acidente) como companhia durante sua permanência na ilha. Wilson, a bola, representava a consciência de Noland. Na falta de um ser humano que possibilitasse a troca de idéias, Wilson cumpria esse papel.

Penso que o ato de escrever tem um pouco dessa relação meio louca entre Noland e Wilson. Por mais que se pense em quem vai ler e que, mais tarde, se possa disponibilizar o texto para que outros dêem sua opinião, o processo de escolher um tema e decidir como expressá-lo é um ato isolado, em que o escritor só pode trocar idéias consigo mesmo, ou seja, com o seu Wilson.

Neste exato momento, por exemplo, há um debate interno sobre o que é relevante abordar em relação à minha experiência com o Digestivo Cultural. Pouca gente pode me ajudar nisso. Preciso perguntar ao Wilson e esperar a resposta.

Isso acontece sempre. Quando penso em uma coluna para o Digestivo, preciso considerar não apenas a minha afinidade ou conhecimento sobre o tema, mas também a relevância dele para o próprio DC e seus leitores. É diferente de escrever em blog, caso eu tivesse um.

Hoje o Digestivo tem status de pauta cultural, o que nos dá a responsabilidade de apresentar assuntos, resenhas, opiniões e críticas que estejam alinhados à proposta editorial do site. No entanto, também precisamos levar em conta os interesses do leitor. Isso fica claro quando observo o índice de leitura das colunas que escrevo.

Algumas das que eu considero as melhores, mais bem escritas, com uma abordagem relevante para o leitor, acabam sendo fracassos de público. As campeãs de acesso, no entanto, muitas vezes são superficiais, um pouco oportunistas, sensacionalistas. Por isso, quando começo a escrever, já imagino se vou ter poucos ou muitos leitores.

Na conversa solitária com o meu Wilson, algumas vezes pergunto a ele como conseguir que as pessoas interajam e modifiquem essa convivência solitária que tenho com meus escritos. O que fazer para ter o texto profundo da Daniela Sandler, a espontaneidade da Andréa Trompczynski ou a autenticidade da Ana Elisa Ribeiro, todas colegas minhas no Digestivo?

Não é por feminismo que citei apenas mulheres. É porque cada uma delas acaba tendo características que eu admiro e até invejo. Porém, escrever é uma forma de expressão como qualquer outra, onde deixamos nossas marcas. Posso até tentar trazer para meu estilo algumas dessas qualidades, mas só vou conseguir me expressar dessa forma no dia em que as características passarem a fazer parte de mim.

Quando recebemos a proposta de preparar um depoimento sobre nossa experiência de colunistas do Digestivo Cultural, fui em busca das marcas no meu texto. Com verdadeiro pavor, acessei minha primeira coluna e comecei a ler o que havia escrito, há quatro anos, sobre O náufrago. Tive um medo profundo de encontrar um texto desprezível, bastardo (o mesmo medo que me impede de ler outras das primeiras colunas, porque destilei meu preconceito e intolerância com uma cultura diferente da minha enquanto tentava me adaptar a ela).

Comecei a leitura com a respiração suspensa, mas fui relaxando à medida que percorria as linhas. Não estava tão mal assim. Algumas das análises achei até bem interessantes. A coluna me levou às recordações do primeiro contato com o Digestivo. Lembrei que as letras em tipo Courier, estilo máquina de escrever, me passaram a sensação de elegância, seriedade e despretensão, e que a diversidade de cores me pareceu uma referência à cultura, porque, para mim, a cultura é colorida.

Hoje o Digestivo não é mais o mesmo, e não há nenhum saudosismo nisso. O DC deixou de ser um site para se tornar um veículo, dos mais respeitados. Não pegou o mesmo caminho de outras propostas similares. Mantém a mesma elegância e seriedade que os tipos serifados transmitem desde o começo.

Mesmo tendo provado que veículos podem surgir e permanecer, com credibilidade, apenas no ambiente virtual, foi um orgulho ter em mãos a versão impressa do Digestivo, encartada na edição de final de ano da revista da FGV. Como em muitas outras ocasiões, percebi que havia uma intersecção entre a minha própria história e a do Digestivo. Para mim e para o DC, o final de 2004 trouxe a confirmação de que os caminhos escolhidos tinham sido os mais acertados.

Quatro anos depois do primeiro texto, um ciclo se encerra. Fazer parte do Digestivo continua sendo um prazer, só que cada vez mais caro. O preço é o grau crescente de responsabilidade, de profissionalismo, de qualidade do texto. Afinal, não é fácil se manter alinhada com um time desses.

Quatro anos depois do desastre, Chuck Noland estava pronto para abandonar a ilha e voltar à civilização. Levou Wilson consigo, mas o perdeu no meio do caminho. Parece que o rosto pintado na bola de vôlei dizia: “vai sozinho, com outras pessoas por perto, você não precisa mais de mim”. Eu ainda não posso abrir mão do meu Wilson. Acredito que vamos continuar tendo longas conversas silenciosas sobre essa coisa essencial e angustiante que é escrever.

Adriana Baggio
Segunda-feira, 11/4/2005

 

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