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Segunda-feira, 11/4/2005
A justa medida das coisas
Lucas Rodrigues Pires

Vida de colunista não é fácil. Em site então, tudo parece mais difícil e rápido em razão da facilidade (técnica) em se publicar e, num exemplo de autonomia raro, da independência dada pelo Editor a cada um publicar os próprios textos. Não tem que mandar para Ele antes, ficar na espera de um retorno para ver as “metamorfoses” que seu texto querido sofreu. No fundo, o esquema do Digestivo, que não deve ser muito corrente no jornalismo on-line (impresso nem ouso comparar, já tive experiências amargas de ver texto meu cortado, decepado, mutilado e um tanto sem sentido ao final quando publicado), impõe a cada jornalista/escritor/artista/colunista uma responsabilidade nada fácil de lidar.

Quase 3 anos de colunas. Mais que os demais, creio ser o mais instável em termos de publicação. As correrias da vida fazem-nos perder prazos, atrasar entregas e a remodelar “contratos verbais”. Num exercício de autocrítica, faço meu mea-culpa por deixar mais de mês sem publicar. É duro ver todos publicando e você vendo o bonde passar.

Fora da linha misericordiosa que em nada se aproxima do Digestivo, ainda mais de seu Editor, que tem em seus Digestivos pinceladas rápidas e ácidas de um conhecimento que sempre busca o não-dito, é importante ressaltar a vivacidade que o site conquistou desde sua fundação. O Digestivo Cultural é como um organismo vivo que se auto-alimenta sem raiz e tronco centrais. Uma espécie de rizoma, para entrar na filosofia de Deleuze-Guatari (calma, já estou saindo do academicismo quase incompreensível). Uma multiplicidade de opiniões, críticas, depoimentos, debates, experiências e principalmente cultura. Sim, porque aquele cultural depois do Digestivo quer dizer algo. E cultura não é apenas aquela entendido stricto senso, ou seja, a cultura tida como erudita, mas cultura em sua extensão maior, que envolveria quase toda produção humana. Aqui entra a cultura de massa, objeto de análise de muitos dos integrantes do Digestivo.

Eu, particularmente, dediquei-me em quase três anos a escrever sobre cinema (escapei uma ou outra vez, confesso, mas foi muito válido). E não qualquer cinema, mas sim o cinema brasileiro. Desenvolvi uma paixão pelo cinema e o cinema brasileiro tem um espaço todo especial em meu coração porque, goste-se ou não, ele é parte da nossa cultura. O cinema estrangeiro também, mas de uma cultura que podemos chamar de global. O cinema brasileiro é objeto de estudo de minha pesquisa como acadêmico (sim, estudo para ser um desses chatos que falam abstratamente e para seus pares) e foco de interesse da minha atuação como jornalista. Foi exatamente por isso que, numa exibição especial para jornalistas de um filme de que não me recordo, conheci o Editor. Sim, uma espécie daquelas típicas dos anos 60 e 70, daqueles jornalistas românticos que vemos nos filmes americanos: bonachão (nem tanto), fala mansa e olhos quase a se fechar, como a indicar uma futura cochilada. Mas essa figura iniciou uma conversa comigo e logo nos tornamos amigos – troca de e-mails, informações de próximas “cabines” etc. Daí para um convite a escrever no site foi um pulo, oportunidade que aceitei pois queria fugir da mesmice do mercado e dos números ligados a cinema (com o que trabalhava na época). Era uma oportunidade de exercitar textos mais longos, pessoais, em que poderia me soltar e até criticar conforme meu próprio juízo. Como costumo dizer, certos trabalhos são emburrecedores; escrever para o Digestivo é uma forma de abrir horizontes e um exercício do pensar. A mesma coisa posso dizer sobre ler o Digestivo.

Escrevi mais de 40 colunas, alguns textos me orgulho de ter escrito e, quando os releio, depois de algum tempo, imagino se realmente fui eu que os escrevi. Outros percebemos que ficaram bons, mas nem tanto. O importante é que cada texto tenha algo a dizer, a informar, a acrescentar num debate. Meus colegas colunistas apostam nisso, uns mais chegados à polêmica, abordando assuntos em pauta, outros mais voltados a temas literários e artísticos. Lembro que quando iniciei minha atividade no Digestivo, o cara mais lido e respeitado era Alexandre Soares Silva, que logo em seguida se desentendeu com o Editor (sempre ele...) e decidiu criar um blog pessoal. Hoje li que ele continua fazendo sucesso (competência e sorte?). Recordo de ver os tantos “espectadores” que seus textos tinham e cheguei a ter um pingo de inveja (a inveja saudável do tipo “ainda chego lá”). Seus textos tendiam ao polêmico e o maior termômetro disso ainda é o número de comentários que determinada coluna recebe. Atualmente, o título de polemista do Digestivo é de outra pessoa, se desconsiderarmos o Editor que, por sua presença onipotente e seu poder, é polêmico por natureza (coisa que Ele acentua com suas opiniões claras e texto apurado, bem ao estilo indicado por Ítalo Calvino em Seis Propostas para o Próximo Milênio). Hoje, mesmo não escrevendo coisas polêmicas ou de forte impacto nos leitores (quem assiste à maioria dos filmes brasileiros sobre os quais eu escrevo?), consegui uma boa dose de fiéis, mas nada exagerado (números, sempre eles...).

Enfim, são diversas lembranças, todas permeadas pela discussão maior de nosso interesse – a cultura. Cada um com suas especificidades, desejos, ideologias, interesses e limitações. O Digestivo é feito disso tudo. Ao leitor cabe escolher o que ler, concordar ou discordar com o que é dito e, quem sabe, se deixar levar pelo que dizemos. O Digestivo, em quase 5 anos de vida, apresenta um dose grande de acertos. Isso é credibilidade que não se pode ignorar. “Só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas”, escreveu Raduan Nassar em Lavoura Arcaica, um bom fim de texto para um texto comemorativo. Parabéns a todos.

Lucas Rodrigues Pires
Segunda-feira, 11/4/2005

 

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