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Segunda-feira, 20/2/2006
Entrevista a Cultura e Mercado
Julio Daio Borges

Leitor: no início do mês, o jornalista André Fonseca, do site Cultura e Mercado, me procurou para elaborar meu "perfil" (!). Encaminhou por e-mail algumas perguntas, que serviram de base... Mas elas ficaram tão boas, e também as respostas – modéstia à parte –... que resolvi publicar esse "making-of", do profile, aqui, no Digestivo Cultural. Espero que você goste, e que aproveite. Trata, claro, do Digestivo, de jornalismo cultural, dos nossos Colaboradores e, óbvio, também dos Leitores! Temas, felizmente ou infelizmente, inesgotáveis...! – JDB

1. O que você entende por jornalismo cultural? E dentro da sua visão, os cadernos de cultura dos jornais e as revistas de cultura no Brasil estão fazendo realmente jornalismo cultural? O que você destacaria?
É muito difícil, para mim, definir “jornalismo cultural” como um conceito abstrato. A meu ver, talvez o papel do jornalista cultural seja o de mediação, entre a chamada indústria cultural e o público leitor. Mas nós sabemos que isso quase não acontece nas revistas e nos jornais do Brasil. Quanto maior o alcance de um veículo – ou quanto maior a importância a ele atribuída –, maior a pressão das assessorias de imprensa, que supostamente deveriam fazer a mediação entre a indústria cultural e os jornalistas. O jornalista cultural deveria então, como se diz, separar o joio do trigo – informar e, mais do que isso, formar o leitor, através de sua bagagem e de seu julgamento crítico. Infelizmente, porém, predomina hoje o jornalismo de agenda, onde as vedetes são os “guias” de fim de semana, e o modus operandi (até em termos de linguagem) é o mesmo da divulgação publicitária.

2. As universidades sabem formar jornalistas culturais?
Não sei dizer com precisão, porque não me formei como jornalista na universidade. O que chega até mim – seja pelo meu Editor-assistente (Fabio Silvestre Cardoso, que é professor de jornalismo cultural), seja pelo feedback que recebemos de estudantes de jornalismo que lêem o Digestivo Cultural – é a insistência no “velho fazer jornalístico” de décadas atrás e a constatação de que o nível das turmas é muito baixo, até em termos de cultura geral. Bom, em primeiro lugar, eu acho que qualquer candidato a jornalista cultural deveria se preocupar com seu “repertório”: conhecer as principais manifestações artísticas, ler sobre elas e tratar de refletir criticamente. Eu tenho dúvida se a maioria dos estudantes de jornalismo tem essa consciência, essa maturidade, essa percepção. E mais grave ainda: eu tenho sérias dúvidas se os profissionais do jornalismo cultural têm essa abertura para, digamos, o legado de nossa civilização e, ao mesmo tempo, para o novo. Já os professores parecem muito preocupados com os modelos jornalísticos dos anos 60, 70 e 80. Como disse o Pedro Doria (do No Mínimo), ninguém está formando profissionais para a internet, por exemplo.

3. Quais suas orientações para quem quiser produzir jornalismo cultural no Brasil?
Eu disse, no ano passado, que o jornalista, como o conhecemos, havia se convertido em commodity e que os estudantes de jornalismo deveriam dar seus primeiros passos em blogs. Choquei um monte de gente. Lembro que uma recém-formada ficou particularmente desorientada... Acontece que ainda não caiu a ficha de que o jornalismo tradicional acabou; é privilégio de uma meia-dúzia só. Quem pegou essa era de ouro – em papel –, pegou; quem não pegou, não pega mais. (Aliás, muitos dos que pegaram, têm de lutar todos os dias para manter suas posições...) No meu ponto de vista, o grande desafio para esta e para as próximas gerações de jornalistas – culturais ou não – é garantir que o jornalismo sobreviva, de alguma forma, na internet. É um desafio que nós abraçamos, desde 2000, no Digestivo – porque uma imprensa cada vez mais encolhida não quis imediatamente nos ajudar; e porque a internet, para os “tomadores de decisão” de meia-idade (estatisticamente, a faixa no Brasil), é uma questão ainda de mudança de mentalidade. Os jovens jornalistas, que querem se agarrar às oportunidades ilusórias da velha mídia, deveriam concentrar suas energias para desbravar a nova.

4. O que um jornalista cultural pode fazer nos dias de hoje para conseguir a exposição (e a leitura) de seu trabalho, com a mídia impressa tendo cada vez menos espaço e a mídia eletrônica infestada de iniciativas?
Não há uma resposta fácil para essa pergunta. Meu palpite é que não teremos mais jornalistas “de longo alcance”, como tivemos em outras gerações. Mas não acho que isso tenha necessariamente a ver com a internet. Quando Paulo Francis morreu, há quase dez anos (a internet era incipiente ainda), foi quase unânime a constatação de que nenhum outro jornalista, dali pra frente, teria a mesma exposição, a mesma influência e até a mesma responsabilidade. Eu gosto de pensar que a beatlemania já passou, porque não vamos inventar novamente a televisão – a mídia de massa. A internet está mostrando que vai-se trabalhar, daqui pra frente, a comunicação pessoa-a-pessoa e não mais o modelo de um-para-muitos. O especialista arrogante, nesse cenário, perde espaço e o palpiteiro descompromissado ganha. Entrando no exemplo do Digestivo, considero que crescemos porque nunca adotamos uma postura “de cima pra baixo” como o resto da mídia; cultivamos sempre o diálogo aberto e franco; e tivemos a humildade necessária para, constantemente, admitir erros e mudar. Se você tomar aquela frase famosa de que a reputação é “a soma de mal-entendidos em torno de uma pessoa”, e se você considerar que, na internet, as reputações estão permanentemente em cheque, vai perceber que estamos inaugurando uma nova era.

5. O Digestivo, conforme apresentado em seu editorial, construiu uma das únicas pontes entre a velha e a nova mídia. Isso foi um objetivo planejado ou conseqüência casual? Como se deu esse processo? E porque a grande imprensa parece reticente em revelar novos talentos na área de jornalismo?
O projeto inicial do Digestivo era revelar novos talentos. E eu acho que, em grande medida, continua sendo. Acontece que alguns jornalistas mais atentos da “velha guarda”, digamos assim, perceberam que – apesar das fracassadas experiências jornalísticas no Brasil do tempo da Bolha – eles deveriam participar do advento da internet em algum momento. Como o No Mínimo tem aquele “cast” fixo – e é muito mais restritivo nesse sentido –, o Digestivo acabou surgindo no horizonte como uma alternativa. E a ponte se fez então. Lógico que esses mesmos jornalistas se identificaram com a qualidade do nosso trabalho, com o profissionalismo, com a constância. E óbvio que eles sempre foram, com sua experiência e seus conselhos, a nossa inspiração. A seção “Ensaios” – que é como chamamos a seção em que esses jornalistas estão – surgiu quando Luís Antônio Giron (hoje editor de cultura da Época) me ofereceu uma versão mais longa de um texto seu que havia sido cortado no caderno de cultura de um grande jornal. Depois veio o Daniel Piza, o Sérgio Augusto... E eu imediatamente percebi que precisaria criar uma nova seção; não poderia misturá-los com os jovens Colunistas do Digestivo... Sobre a imprensa não dar tanta bola, hoje, para novos talentos, eu acho que tem bastante a ver com o encolhimento das redações, em conseqüência de investimentos precipitados em outras (novas) mídias: digamos que eles estão, como disse Otávio Frias Filho, “se segurando”; não têm como absorver a oferta de talentos em botão – ainda mais depois da internet.

6. Grandes jornais unem suas redações de conteúdo impresso e conteúdo on-line. Boa parte do público, atraído pela velocidade de informações da Internet, não tem mais interesse na leitura de jornais e revistas tradicionais. A mídia impressa está fadada à decadência? E o que ela poderia fazer para reverter esse processo?
Ninguém parece ter uma resposta definitiva para essa questão, e eu não sei se arriscaria... No meu modo de ver, é fatal que o papel vá diminuir ainda muito. É caro, não é dinâmico e é muito pouco interativo. Em termos de notícias, quando o jornal chega na porta da sua casa, ele já está obsoleto. Já era assim com a televisão: você lia no dia seguinte sobre algo que havia visto na noite anterior. Posso estar exagerando, mas, para mim, lançar um jornal ou uma revista hoje é como lançar uma gravadora – nos velhos moldes – em plena época do MP3, do iPod, do iTunes... E nem é apenas um problema de suporte, é também um problema de mentalidade. Imagine o que é, para um jornalista que sempre viveu de escrever (de vender o que escrevia), entrar na internet e ter de, por exemplo, “blogar” (de graça)? Ou então estar à mercê de ser contestado a toda hora por qualquer comentário mais atrevido, e-mail ou o que for? Invertendo a questão: se alguém, de repente, me dissesse que a internet iria acabar amanhã e que eu teria de me adequar aos padrões da velha imprensa, eu acho que resistiria até a morte. Felizmente, os ventos sopram a nosso favor. E os velhos jornalistas que mais resistirem são os que mais vão sofrer na adaptação.

7. A Internet ainda pode ser vista como um dos campos mais férteis para a democratização da comunicação?
Cada vez mais. Existe, evidentemente, a ameaça, volta e meia ressuscitada, de querer controlar a internet. Desde que eu conheci a internet, em 1995, eu sempre pensei que não seria difícil controlá-la: tecnicamente falando, está tudo registrado em algum lugar. Você pode reconstituir os passos de quem você quiser e, teoricamente, chegar a qualquer pessoa... Eu não sei o que aconteceria com a internet dividida entre vários países. Provavelmente, não iria dar coisa boa. Veja o caso do Google na China. Os governos iriam querer intervir... Quando ameaças desse tipo se concretizam, penso que podemos estar vivendo um renascimento, que – a qualquer momento – pode acabar. Uma brecha no tempo em que havia plena liberdade, alcance ilimitado, a um custo baixíssimo. Talvez isso justifique o fato de a internet não ter sido levada a sério ainda por alguns setores: ela é boa demais pra ser verdade. Ninguém é dono, não tem como haver monopólio, o antigo mapa de “explorados & exploradores”, “privilegiados & excluídos”, “classe operária & detentores do capital” não mais se configura. É outra história; e é outra História.

8. Qual sua visão sobre o fenômeno dos blogs? O que esse movimento deve deixar de “lições”?
Acho que os blogs vieram pra ficar. Aqui no Brasil, os blogs não foram adotados amplamente e, fora raríssimas exceções, estão ainda presos a uma certa adolescência... Mas nos Estados Unidos, qualquer especialista parece ter seu blog. Lá é uma ferramenta indispensável; é quase como ter um site... É cedo ainda para pensar nas “lições que os blogs vão deixar”, porque é um fenômeno relativamente recente que teve apenas uma primeira explosão e que, por isso mesmo, ainda está se consolidando. Em termos de imprensa, eu acho que a mídia constituída (jornais, revistas, rádios e televisões) perde um pouco esse papel de “fiscalizadora” da sociedade e, no longo prazo, acaba dividindo com os blogs. Nos EUA, já acontece. Num passado bem recente, os bloggers, por exemplo, derrubaram o âncora do jornalismo da rede CBS; os blogs ajudaram a financiar campanhas eleitorais; e todas as grandes empresas estão sendo pressionadas no sentido de criar seus próprios blogs (mostrando a sua cara, nem que seja através de um “blogueiro honorário”). Como eu falei, a comunicação, de maneira geral, vai ficando menos impessoal e mais humana.

9. Os cadernos de cultura dos jornais têm suas pautas normalmente dominadas pela cobertura de grandes eventos, lançamentos e críticas. Falta espaço para reflexão e opinião. As redações correm atrás do que supostamente atrai mais interesse dos leitores, e estes parecem estar satisfeitos com o que lêem. Porque esse círculo vicioso não é rompido?
Porque tem alguém ganhando com isso. Pelo que sei – espero não estar ofendendo ninguém aqui –, os jornalistas, em sua maioria, são muito mal remunerados e, na área cultural, acabam seduzidos pelos produtos (diretos e indiretos) da indústria. Pode parecer estranho para pessoas de outras áreas, mas os jornalistas culturais, principalmente os mais assediados, estão se vendendo barato todos os dias por causa de CDs, DVDs, entradas grátis, almoços em restaurantes... Se fizermos as contas, somando todos esses bens de consumo, vamos descobrir que eles não são tão representativos assim na remuneração do jornalista, mas existe toda uma volúpia em torno de ser “convidado VIP”, assistir aos espetáculos com antecedência, receber os materiais em primeira mão... É lamentável, mas o jornalismo cultural está exposto a esse tipo de corrupção. As empresas de notícia, salvo raríssimas exceções – de novo, não quero soar aqui injusto –, também devem levar a sua parte, eu suponho. Por isso tudo, eu acho que a internet, por não estar totalmente estabelecida, é a única mídia que ainda consegue driblar esses mecanismos de cooptação.

Julio Daio Borges
Segunda-feira, 20/2/2006

 

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