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Segunda-feira, 24/1/2005
Os 35 anos do Jornal Nacional
Paulo Henrique Amorim

Nikolai Yezhov é quem aparece à direita, na primeira foto, ao lado de Stalin. Ele era Comissário para o Transporte Marítimo. Yezhov aderiu aos bolcheviques antes da Revolução de 1917, lutou no Exército Vermelho e se tornou um colaborador próximo de Stalin. Chegou a chefe da NKVD, ou o Comissariado do Povo para os Assuntos Internos, que antecedeu a KGB. Foi Yezhov quem dirigiu o grande expurgo dos inimigos de Stalin, de 1936-38, conhecido como a “Yezhovschina”.

Acontece que o Comissário Yezhov caiu na própria armadilha. Denunciado como trotskista, foi preso e executado provavelmente em 1939.

Na segunda foto, em seu lugar aparecem as águas de um canal próximo de Moscou.

O livro Jornal Nacional – A notícia faz história, da Jorge Zahar Editor, para comemorar os 35 anos do Jornal Nacional, não faz justiça a Roberto Marinho.

Eu apareço no livro mais do que ele. Trabalhei na Rede Globo de 1984 a 96. No entanto, fora o prefácio, onde Roberto Marinho aparece como o empresário de visão, e o capítulo sobre a morte dele, meu nome aparece 23 vezes, e o dele, treze. Há duas fotos em que apareço. Ele, em uma só.

Roberto Marinho era mais do que um empresário de visão. Ele era o editor-at-large do jornalismo da Rede Globo (e do jornal O Globo). Ou, como se dizia na redação, quando cheguei à TV, ele era “o nosso melhor repórter”. Ele e só ele decidia sobre o noticiário “sensível” de política e economia. Os editores de política e de economia (como fui) tinham a autonomia de vôo de uma barata.

Em vários episódios que o livro reconstitui, Roberto Marinho, como o Comissário da fotografia, simplesmente “some” – quando, na verdade, desempenhou papel decisivo. O mais conspícuo é a edição do debate entre Collor e Lula, nas vésperas do segundo turno da eleição de 89. A decisão foi de “pôr o pior do Lula e o melhor do Collor”. E, embora os profissionais Octavio Tostes e Francisco Tambasco (pág. 221) tenham fixado os pontos principais do episódio, “pôr o pior do Lula e o melhor do Collor” era uma decisão que só Roberto Marinho poderia tomar – e tomava. E ninguém, no livro, cogita dessa hipótese.

Creio, porém, que a minha melhor contribuição à crítica desse livro seja em relação à eleição para Governador do Rio, em 1982.

Para preparar esse trabalho, minha empresa, a “PHA Comunicação e Serviços”, contratou a “Papier Produções e Editora” para produzir uma investigação que explorasse três hipóteses:

1) Houve uma tentativa de fraude na eleição para Governador do Rio, em 1982, com o objetivo de roubar a eleição de Leonel Brizola e eleger Wellington Moreira Franco, do PDS;

2) As organizações Globo (jornal e tevê) coonestaram a tentativa de fraude;

3) Brizola lutou como uma fera e, com a ajuda do Jornal do Brasil (do qual eu era, na época, chefe da redação), da Rádio Jornal do Brasil e da TV Bandeirantes, evitou a fraude.

A equipe que contratei não teve acesso a uma peça importante da investigação: não pôde assistir à fita com o programa Show (sic) das Eleições, exibido pela TV Globo, nas eleições de 82, pois “não temos em nosso acervo a matéria solicitada”, informou Maria Alice Fontes, gerente de operações do Centro de Documentação da Rede Globo.

É uma pena. As referencias ao Show em outras fontes permitiram, porém, reconstituir trechos essenciais do programa.

Este link; o trabalho da jornalista Maria Helena Passos, autora da reportagem “Cuidado! Quem procura pode achar”, sobre a investigação frustrada na justiça e na polícia; além das entrevistas com César Maia, Pery Cotta e o Procurador Celso Fernando de Barros; o relato de Pedro do Couto e do analista de sistemas, Glauco Antonio Prado Lima; e a contribuição da “Papier” e de outros profissionais contratados pela “PHA” – tudo isso foi o que me permitiu preparar esse trabalho.

Sobre a tentativa de fraude
Pouco antes da eleição, fiquei de orelha em pé por causa de duas informações que recebi. Primeiro, o repórter de política do Jornal do Brasil, Rogério Coelho Neto, me contou que o Deputado Léo Simões, do PDS do Rio e notoriamente ligado ao SNI e ao Presidente João Baptista Figueiredo, lhe tinha dito que o Brizola ia perder a eleição, porque ia ser muito grande o numero de brancos e nulos num dos maiores redutos dele, a Baixada, por causa da vinculação dos votos.

Como se sabe, para o PDS ganhar a eleição, o regime militar impôs “a vinculação de votos”: o eleitor tinha que votar no mesmo partido de governador a prefeito.

Também pouco antes da eleição, Wellington Moreira Franco foi ao prédio do Jornal do Brasil, na Avenida Brasil, dar uma entrevista à Radio. Passou na redação do Jornal e me disse a mesma coisa: o eleitor do Brizola não ia saber votar.

A tentativa de fraude começou na escolha da empresa que ia contar os votos, a Proconsult. Até um órgão do Governo, o Serpro, se recusou a participar da concorrência: alegou que não podia dar conta da totalização de eleições majoritárias, estaduais e municipais, ao mesmo tempo.

Foi a sopa no mel para a parceira SNI/Proconsult. Era para ser um passeio na raia. O bicheiro Castor de Andrade, sólido aliado de Wellington Moreira Franco e do Governo militar chegou a dizer: “nunca pensei que fosse tão fácil ganhar uma eleição”.

A Proconsult tinha concebido um “diferencial Delta”, que seria “o grande eleitor” – os votos brancos e nulos que desfalcariam o Brizola.

Uma apuração paralela do PDT, liderada por Cesar Maia, notou um fato singular: os primeiros boletins oficiais (e da Proconsult) eram divulgados sem os votos nulos e brancos. O repórter Heraldo Dias, do Jornal do Brasil, uma semana depois, verificou em boletins do TRE, elaborados pela Proconsult, que os votos brancos e nulos diminuíam, embora o número total de votos aumentasse.

Além do “diferencial Delta”, era importante que, primeiro, entrassem no computador os votos de onde Wellington era forte – o interior do Estado. Para criar o clima de “já ganhou”, acostumar (ou “preparar”, como prefere Luis Carlos Cabral, diretor Regional da TV Globo, no Rio, na época) a opinião pública para a idéia de que Brizola ia perder.

A entrevista do Procurador Celso Fernando de Barros a Maria Helena Passos demonstra que a Justiça não se empenhou em investigar a tentativa de fraude. Muito menos a Polícia Federal. O JB investigou e o então repórter do Jornal do Brasil, Ronald Carvalho fez uma perícia da Proconsult.

Como disse o ínclito General Golbery, que se recusou a criticar o que rapaziada do SNI fez na eleição do Rio. O que ele criticou foi a inépcia. “Então, você acha que roubar uma eleição através do sistema de computador é coisa fácil? Eles simplesmente não sabem fazer isso”. Se soubessem, tudo bem...

Inépcia por inépcia, ressalte-se que a intenção original do Governo deu com os burros n'água: nas eleições de 82, o numero de votos nulos e brancos diminuiu. Inclusive no Rio.

Sobre o papel das Organizações Globo
Como demonstra este link, o jornal O Globo (que fornecia os dados à Rede Globo) cometeu todos os erros(?) da Proconsult.

Como lembrou Brizola à Rede Globo, por um fenômeno de logística que merecia ser um case estudado pela Harvard Business School, os votos de Itaperuna, no interior do estado, chegavam mais rápido ao Globo do que os votos de Bonsucesso, um subúrbio da Zona Norte da cidade.

Segundo o depoimento de Cabral e de Osvaldo Maneschy, então funcionários das Organizações Globo, no sistema de apuração do jornal O Globo os votos dos redutos de Moreira Franco entravam numa proporção maior e mais rápido do que os votos dos redutos de Brizola – embora estivessem disponíveis.

Segundo o depoimento de Homero Icaza Sánchez, editor de analises e pesquisas da TV Globo, Roberto Irineu Marinho, filho de Roberto Marinho decidiu que ele e Roberto Medina (ligado a Wellington) elegeriam Moreira Franco de qualquer jeito.

Cabral chegou a dizer a Roberto Irineu Marinho que era preciso colocar no computador da Globo mais votos da capital, onde havia mais redutos de Brizola, porque, nas ruas do Rio, onde se bradava “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, as equipes da Globo não tinham condições de trabalhar.

A eleição foi na segunda-feira, dia 15 de novembro de 1982.

Brizola, na verdade, só ganhou a eleição na quinta feira.

Naquele dia, 18 de novembro de 1982, a manchete do Jornal do Brasil era “Brizola deve vencer Moreira por 34,1% a 29,5%”. A manchete do Globo foi: “Decisão da eleição só com as últimas urnas”. Acima, em letras menores, ainda no Globo, “diferença será inferior a 60 mil votos”. E não foi por acaso que Brizola ganhou. Na capa do Globo, ao lado, há um outro título: “(Ernani) Galvêas (ministro da Fazenda) confirma que Brasil vai recorrer ao FMI”. Na página 10, o Globo informa: “Primeiro boletim oficial do TRE dá Moreira na frente”.

No sábado, por telefone, Roberto Marinho repreendeu Cabral: “Você me desobedeceu. Eu disse que não era para projetar e você passou dia inteiro projetando, dizendo que o Brizola ia ganhar. Você me desobedeceu.”

Naquele mesmo sábado, um antigo repórter da Radio Globo disse a Maneschy, na redação do jornal: “o velho enlouqueceu. Ele mandou parar o computador”.

No domingo, 21 de novembro de 1982, o titulo da primeira página do Globo é “Resultado final ainda indefinido”.

Na sexta-feira, Boni já tinha mandado tirar do ar o Show da Rede Globo.

O que o livro Jornal Nacional – A notícia faz história se limita a fazer, a partir da página 104, é botar a culpa no sistema de apuração do jornal O Globo. E admite apenas um “problema metodológico”, que foi confiar o sistema de apuração de uma televisão, que tem que dar informação várias vezes ao dia, a um jornal – que sai uma vez por dia.

O livro diz que o “escândalo Proconsult” dizia respeito à empresa contratada pelo Tribunal Eleitoral (e não tinha nada a ver com as Organizações Globo). E aceita a conclusão da Justiça de que os erros não foram intencionais.

Porém, há um depoimento precioso. O de Alberico de Souza Cruz. Ele era, então, “um dos responsáveis pela Editoria de Números da Rede Globo”. Mais tarde, foi um dos responsáveis pela edição do debate Lula x Collor, da edição do Jornal Nacional propriamente dito, e Diretor de Jornalismo, em lugar de Armando Nogueira.

Na página 116, Souza Cruz diz assim: “Aí, foi o famoso episódio da Proconsult, que não tem nada a ver com TV Globo. A Globo nem tinha conhecimento do complô que existia contra o Brizola. Hoje, eu estou convencido de que existia um complô. Mas, a Globo não participou dele, porque a gente até nem tinha competência para isso. Podia ser que algumas pessoas da Globo tivessem conhecimento desse complô contra o Brizola, mas nós não tínhamos. Nós, os profissionais, não tínhamos conhecimento nenhum. A Globo nunca participou de nenhum complô, a Globo que eu digo, os profissionais da Globo, nunca participaram de nenhum complô contra Brizola.”

Tenho todos os motivos para acreditar que muitos dos profissionais da TV Globo com quem tive a honra de trabalhar, de Armando Nogueira a Woile Guimarães, de Alice Maria a Luiz González – para falar dos que exerciam cargos de chefia –, não tinham conhecimento da operação para coonestar a fraude. Porém, acima deles, “algumas pessoas” das Organizações Globo se dispuseram a ter um papel mais importante para tirar a vitória de Brizola do que teve a Rede Fox de televisão para eleger George Bush presidente dos Estados Unidos, em 2000. O documentário de Michael Moore, Farenheit 11/9, que se tornou anátema para direita furiosa do mundo inteiro, deixou claro como a fraude eleitoral na Flórida fomentou e desembocou num impasse. Esse tipo de impasse tem que acabar na Justiça. Nos Estados Unidos, acabou na Suprema Corte, controlada pelos republicanos. No Rio de 1982, acabaria num Tribunal Eleitoral que foi, no mínimo, omisso diante da tentativa de fraude contra Brizola. É o que fica claro com o levantamento dia-a-dia da cobertura das eleições, as entrevistas e as reportagens.

Só que Brizola não fez o que os democratas fizeram em 2000, segundo Moore: os democratas assistiram à derrota. Brizola saiu da jaula e confirmou a eleição na batalha da opinião pública. Enfrentou o Globo dentro da Globo, denunciou a fraude aos jornalistas estrangeiros, saiu de redação em redação. E, mais tarde, teve papel decisivo – como lembra César Maia – na redemocratização do Brasil. Teria existido o comício das Diretas, na Candelária, se o governador do Rio fosse o Wellington?

Brizola não ficou sentado em cima das mãos. É bem verdade que Brizola tinha informações que vinham de dentro do sistema militar e da própria Rede Globo. E o senador do PDT, Saturnino Braga, soube que aliados de Wellington tramavam o golpe e denunciou as Organizações Globo da tribuna do Senado.

O diabo as faz. No dia 14 de dezembro, O Globo e o Jornal do Brasil divulgaram o resultado oficial da eleição. E O Globo errou: tirou dez mil votos da diferença entre os dois candidatos mais votados divulgada pelo TRE: publicou 168 mil, quando a diferença a favor de Brizola foi 10 mil votos maior: 178 mil votos a mais que Wellington. O Globo também tirou 464 votos de Wellington...

E eu próprio redigi com irreproduzível prazer a nota de correção do JB: “a projeção da Rádio e do JB estava errada: errou por 0,08%”.

Brizola ganhou a eleição duas vezes. Na lei e na marra.

Post Scriptum
Quero agradecer a gentil colaboração de Celso Fernando de Barros, Luis Carlos Cabral, Villas-Bôas Corrêa, Pery Cotta, Pedro do Couto, Glauco Antonio Prado Lima, César Maia, Oswaldo Maneschy e Xico Vargas. Evidentemente, eles não tem nada a ver com a minha opinião ou versão dos acontecimentos.

Veja aqui os levantamentos e reportagens em que me fundamentei para apresentar essa crítica.

Nota do Editor
Texto originalmente publicado no blog de Paulo Henrique Amorim no UOL. Reproduzido aqui com sua autorização.

Para ir além





Paulo Henrique Amorim
São Paulo, 24/1/2005

 

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