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Segunda-feira, 4/4/2005
O poeta em pânico
Donizete Galvão


Pesistance of vision, or, The poet marches on

Quem me ouvirá?
Quem me verá?
Quem me há de tocar?


Murilo Mendes, “A poesia em pânico”

Escrever poesia no Brasil é viver em claustrofobia. O poeta respira um ar rarefeito. Tudo se fecha a sua volta: ele está em pânico. Habita uma espécie de limbo, zona fantasma, onde nada do que produz encontra eco ou ressonância. Como no poema de Murilo Mendes, pode dizer: “Vivi entre homens/ que não me viram, não me ouviram/ Nem me consolaram”. Convertido numa espécie de alquimista, cumprindo a profecia de Giulio Argan, investe em uma busca que, todos sabem, resultará em fracasso.

O poeta insiste: quer ganhar visibilidade. Quer chegar até as estantes das livrarias e das bibliotecas. Quer ser lido, comentado pelos seus pares e pela crítica. Extenuado pela tensão quase insuportável de construir uma obra, deve converter-se também em seu próprio agente literário, assessor de imprensa e distribuidor, sem ter o menor jeito para essas tarefas. A que situações ridículas têm de submeter-se, para ver seu livro editado, aquele que não é multimídia, ídolo pop ou instante celebrity.

Deve criar uma carapaça anti-rejeição e fazer como Sylvia Plath, que enviou 45 contos à revista Seventeen antes de ter um deles aceito? Os editores, com raras exceções dos apaixonados pela poesia, fogem dos autores como se estes tivessem sarna. Devolvem originais em cartas padronizadas com a indefectível “nossa programação já está completa”. E deve estar mesmo, para os próximos dez anos. Claro que para o livro do cantor de rock, para os poemas eróticos de uma estrela de TV ou para crônicas requentadas de colunistas dos grandes jornais há sempre uma grande flexibilidade nesta rígida programação editorial.

A pergunta básica é: tem espaço garantido na mídia? Então, é só publicar. Ou até mesmo fabricar-se um escritor. Unanimemente, vai merecer páginas dos cadernos de cultura, resenhas e até entrevista em talk show. Para os demais, brande-se o espectro da falta de mercado. Como fica aquele que trabalha apenas com literatura, não tem padrinhos nem cultiva amigos nas editorias? Escreve um livro e cria um escândalo para que a coisa ganhe o tão falado “gancho jornalístico”?

Quem escreve poesia não está aspirando chegar à lista dos mais vendidos. Viu, entretanto, serem dissolvidos os raros espaços de que podia dispor. Estes espaços foram engolidos pela máquina promocional e pelo jornalismo de release. Clips, comics, escândalos, moda e TV ocupam todas as páginas. O escritor sabe que a discórdia entre poesia e mercado é profunda. Mas quer ser tratado com um mínimo de dignidade.

Em uma época em que todo mundo precisa ser bonito, rico, saudável e feliz e tudo deve ser leve e divertido, que interesse pode despertar o espelho perverso do poeta? Quem quer-se ver como uma retorcida figura saída de um quadro de Francis Bacon? Com a linguagem contaminada pela publicidade, pelo entretenimento barato e pela psicologia de auto-ajuda, a tentativa de devolver vigor, intensidade e frescor à língua soa hermética e gera mal-estar. A poesia, além de inútil, é também indesejada.

O poeta, entretanto, insiste em escrever seus poemas. Não lhe resta outra alternativa. Poderia buscar o suicídio, a santidade, o vício: estas “outras tantas formas de falta de talento” de que falou Cioran. Está preso a uma obsessão nunca sublimada. Quer, através da língua, assegurar a permanência enquanto tudo se desfaz. Pouco importam os mecanismos que o movem: exibicionismo, narcisismo, paranóia, depressão. Usa de artifícios, filtra e depura para transformar o desprezo, a humilhação e a decomposição do corpo e da mente em matéria poética. Pois, como disse Borges, “meus instrumentos de trabalho são a humilhação e a angústia”. Entre tantos indiferentes, deve haver uns poucos que, como na brilhante defesa da poesia feita por Octavio Paz, terão ouvidos para essa outra voz.

Arte poética

A língua da vaca
lambe com gosto
o sal do cocho
e se não há mais sal,
a memória do sal
a madeira, o cocho,
até que tudo fique
polido por sua lixa.

A língua da vaca
recolhe com agrado
o restolho mijado
de rato do fundo do paiol
e mói, remói e tritura
o milho e a palha dura,
até que flores de espuma
brotem no canto da boca,
com suave perfume de leite.

A língua da vaca
lambe a cria trêmula,
num banho batismal,
e engole o mosto,
a gosma amniótica,
e a lamberá ainda,
quando quase novilha
exibir a filha
pústulas no lombo.

Nota do Editor
Ambos os textos são extratos do livro Do Silêncio da Pedra (1996), de Donizete Galvão, tendo obviamente autorizada aqui a sua reprodução.

Donizete Galvão
Campinas, 4/4/2005

 

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