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Segunda-feira, 10/10/2005
Mil dias na Biblioteca Nacional
Pedro Corrêa do Lago

Mais antiga instituição cultural do país e uma das mais importantes, a Biblioteca Nacional vive há décadas uma crise crônica e silenciosa, e está hoje muito mais doente do que se aceita admitir. Orçamentos minguados e tratamento salarial indigno dos funcionários de carreira levaram a uma situação dramática: são apenas 300 os servidores concursados ativos quando o mínimo necessário seria de pelo menos o dobro. A idade média destes é de 50 anos, o salário médio em torno de R$ 900 e o poder aquisitivo atual – após 12 anos sem reajuste – é uma quinta parte daquele de 1993. Quase todos os funcionários têm mais de vinte anos de casa, pois sem concursos públicos a instituição não renova seus quadros há mais de quinze. Como presidente da Biblioteca Nacional, vi como maior urgência da instituição uma decisão que depende dos Ministérios do Planejamento e da Fazenda: restaurar a dignidade dos servidores, criar um plano de carreira e pelo menos dobrar os efetivos por meio de concursos. Estes também deveriam trazer historiadores e outros especialistas para um quadro funcional que foi obrigado a esquecer a pesquisa, e que tenta manter o acervo com admirável dedicação, em tais circunstâncias.

Assim, todos os órgãos da Cultura passaram quase seis meses em greve no último ano, o que alterou rotinas administrativas e de segurança. Nesse contexto ocorreu um furto grave de centenas de fotos e gravuras antigas do acervo, que só foi descoberto depois da volta ao trabalho. A Justiça decretou segredo sobre o inquérito para não prejudicar as investigações conduzidas pelo Ministério da Justiça e pela Polícia Federal.

São poucos os funcionários disponíveis e competentes para as tarefas mais complexas da administração e por isso muitos equívocos acabam sendo cometidos. Corrigi-los foi um esforço constante desde 2003, assim como as infindáveis romarias à Brasília para conseguir pequenas verbas para grandes emergências num governo que não demonstra valorizar a Cultura.

Ouve-se sempre dizer que a coleção da Biblioteca Nacional é das mais notáveis do mundo, e que do Brasil a Biblioteca tem tudo. Não tem. Longe disso. Muita coisa está em péssimo estado e faltam centenas de milhares de peças indispensáveis para o acervo de uma Biblioteca Nacional do Brasil. Nunca as teve, perdeu muita coisa comida por cupins no passado e em roubos sucessivos, restaurou o que pôde e repôs muito pouco. Preencher as lacunas é uma urgência patriótica, mas custará muito dinheiro.

Reformar a Biblioteca Nacional é tarefa hercúlea, necessita de um plano de trabalho contínuo, de pelo menos dez anos e de um enorme orçamento. Mas nada que precise chegar perto do esforço da França que gastou R$ 5 bilhões com sua nova Biblioteca Nacional. Com cinqüenta vezes menos, algo como R$100 milhões dedicados ao acervo, já seria possível realizar prodígios.

Diante da penúria, restou-me a opção de divulgar ao máximo o patrimônio da Biblioteca. Foi criada uma revista mensal de história do Brasil, inicialmente com o nome de Nossa História e agora, Revista de História da Biblioteca Nacional, que trouxe uma visibilidade inédita para as atividades e o acervo da instituição. Mas novidades são mal recebidas por setores corporativos, e mesmo uma iniciativa de grande sucesso, apoiada gratuitamente por um conselho de destacados historiadores convidados pela Biblioteca foi também motivo de polêmica. Resta a triste impressão de que nenhuma ação criativa nesta área do setor público pode ser simplesmente atribuída ao idealismo. Busca-se sempre identificar motivos inconfessáveis ou interesses escusos. Concluo que só existe consenso em torno do imobilismo.

De janeiro de 2003 até hoje, não pude, sem recursos, mudar em profundidade o quadro que encontrei. Diante da impossibilidade de completar tarefa tão ampla, com um horizonte curto e face ao legítimo desânimo dos funcionários há tanto tempo aviltados, é melhor agora me demitir do que insistir no impossível, no qual por quase três anos quis acreditar.

Apesar dos esforços do Ministro Gilberto Gil para aumentar o orçamento da Cultura, a situação da Biblioteca Nacional hoje é comparável à de uma criança pobre que sofre de uma doença rara, curável, mas mortal se não for tratada. Pessoas de boa vontade tentam cuidá-la com paliativos, mas o tratamento completo é muito caro; salvar a criança depende de querer pagá-lo. Na base da aspirina, só dá para disfarçar.

Não sou médico de milagres e deixo agora para outros a tarefa de continuar o boca-a-boca no moribundo. Mas, como cidadão, quero acreditar na sua cura. Encerro estes mil dias como um sonho inacabado e com a grande esperança de, no futuro, ver surgir uma vontade política que dê à Biblioteca Nacional seu pleno papel na Cultura Brasileira.

Sobre o autor
Pedro Corrêa do Lago, 47, bibliófilo, colecionador e editor pediu demissão da presidência da Fundação Biblioteca Nacional na quinta-feira, 6 de outubro. É autor de 12 livros sobre arte e cultura brasileiras.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Este artigo foi publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo de 10 de outubro de 2005.

Pedro Corrêa do Lago
Rio de Janeiro, 10/10/2005

 

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