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Segunda-feira, 28/11/2005
Jornalismo Cultural: reflexões
Israel do Vale

O acirramento do modelo industrial no processo de produção jornalístico deu uma nova conformação aos meios de comunicação. Nas últimas duas décadas, a lógica da linha de montagem, determinante para o cumprimento de prazos, estabeleceu novos parâmetros de trabalho e alterou o perfil do profissional em atividade nas redações (seja de jornais, rádios, revistas ou TVs). Em paralelo, a internet criou novos caminhos para a difusão da informação e tornou mais ágil a distribuição de notícias. Mas não avançou numa questão básica, especialmente na área cultural: a ampliação do repertório de temas (leia-se diversidade) e o tratamento vertical dos assuntos.

O termo diversidade pressupõe não só a existência de uma larga amplitude de opções, mas a capacidade (e o desejo) de identificar e reconhecer a suposta riqueza desta produção – ou, ao menos, o que há de singular e relevante nela. Não é correto imaginar que o simples fato de haver um número maior de opções (neste caso, culturais) seria o bastante para a circulação de um cardápio mais interessante. Não, pelo menos, quando a lógica que impera é a do mercado – tanto do ponto de vista de quem faz como de quem consome (ou é “alvo” da) cultura.

Para o mercado, a lógica é a do giro rápido e do maior alcance possível. Fatores que dependem, em boa parte, de visibilidade e de uma ampla e bem articulada rede de distribuição. Cultura, refrigerantes e hambúrgueres recebem tratamento equivalente, neste sentido – embora nem todo produto cultural seja embalável ou possa ser desdobrado em franquias.

O que há de comum entre eles deveria acabar aí. Mas a leitura mercadológica criou um modelo de valoração que confunde quantidade e qualidade. Ou melhor: menos que uma confusão, o que se vê é um estímulo a esse tipo de associação. Por esse modelo, quem vende mais está mais afinado com os desejos da maioria. É, portanto (na visão simplista), melhor.

É preciso considerar que é a circulação de bens culturais quem dá corpo ao dito mercado nesta área. Seria ingenuidade, portanto, querer negar a importância do(s) mercado(s) para a continuidade da espiral de informação (em jornalismo ou no meio artístico-cultural) e o que isso possa originar de reflexão. É preciso levar em conta também que nem toda manifestação cultural é ou tem que ser mediada pelo mercado.

Mas há um ponto comum a tratar. Se cultura e jornalismo atuam sobre uma mesma lógica (aquela em que se professa, grosso modo, que só existe quem tem visibilidade e é preciso desenvolver atrativos para transformar visibilidade em venda), seria aceitável supor que o melhor jornalismo é aquele dedicado a assuntos que dizem respeito a um maior número de pessoas.

Crer nisso é reforçar a inversão de valores. Ainda que se considere que parcela significativa do espectro de consumidores tende a ser conservadora (ou seja, que prefere transitar num universo com o qual já tenha alguma intimidade), não se pode deixar de levar em conta que uma das fontes de ampliação de repertório (leia-se interesses) é justamente o jornalismo – ainda que este não seja seu papel principal, necessariamente.

Dissecação de hábitos

Um breve passeio por uma banca de jornal mostra como a dinâmica é outra. O que tem sido visto é uma política reafirmativa, em que se oferece mais e mais, massivamente, o que já foi referendado por uma parcela da população.

Basta atentar para o perfil das revistas centradas na vida artística. Quantas são, todos os meses, as capas com um mesmo personagem?

O vampirismo da vida alheia está longe de ser novidade no meio editorial. Mas é este “celebridismo”, com maior ou menor transparência, o que move o grosso da imprensa dita cultural destes dias – e isso vale tanto para a mídia de circulação nacional como para veículos regionais de grande porte. A dissecação pública dos hábitos (saúde, alimentação, diversão, viagens, consumo) reafirma o falso compartilhamento de um falso glamour. Seria isso cultura?

Achatamento crítico

Se a credibilidade é o maior patrimônio de um meio de comunicação, o exercício permanente da crítica é um dos elementos que mais lhe emprestam lastro. Não a crítica como sinônimo de opinião, apenas, mas enquanto postura. O olhar crítico e ponderado do meio de comunicação sobre cada fato ou idéia relevante estabelece uma relação de confiança entre ele e seus “clientes” (leitores, ouvintes, espectadores).

O esforço de discernimento e de tradução dos prós e contras oferecidos por cada situação mantém esticada a corda que os une. Mas a tentativa de estreitamento deste pacto se esmera em distorções. É notório como as revistas semanais, em sua sanha pela diferenciação do que já foi abordado ao longo da semana, têm esgarçado limites.

O investimento interpretativo deu origem a uma espécie de “jornalismo de auto-ajuda”, que em seu propósito de queimar etapas “ensina” como pensar sobre determinado assunto e direciona a conclusão, sem margem para maiores complexidades. Para usar imagem que talvez causasse efeito no contexto, a revista cuida de mastigar e engolir, para que o leitor possa digerir sem sobressaltos nem esforços intelectuais, esparramado na poltrona, no conforto do seu lar.

Na área cultural, isso se manifesta de duas maneiras mais visíveis: no tom de texto de pretensões “bem-humoradas” (em que há mais metáforas que argumentos e subsídios), e no formato de guia de consumo (onde o que está por trás de cada palavra é o “vale a pena ou não gastar o seu dinheiro”).

Os temas são recolhidos no atacadão do mercado, preferencialmente nas gôndolas de best-sellers. Fala-se, no mais das vezes, do que já se ouviu falar – adicionado das futilidades públicas mais fresquinhas. É, certamente, um bom serviço prestado ao estreitamente de horizontes – ou, noutras palavras, ao emburrecimento coletivo. (Mas, afinal, desde quando o jornalismo tem responsabilidades “educativas”?)

Amigos, amigos, negócios...

Fosse pouco, há cada vez menos, no jornalismo de hoje, o estímulo ao que Eugênio Bucci chama em seu livro Sobre ética e imprensa de “conflito”.

Conflito, neste caso, é a capacidade de contrapor visões de mundo, transformar isso em troca de idéias e, quem sabe, colaborar para a relativização das “verdades” pessoais. É uma maneira de fazer do debate um espaço de generosidade, em vez de uma guerra de opiniões ou de um campeonato mesquinho de acertos e erros.

Não é o que se vê na maior parte das situações. A diversidade, no jornalismo cultural de maior visibilidade praticado hoje, perdeu espaço para uma espécie de concurso permanente de misses, cujo lado mais visível é o fã-clubismo dos textos. O debate deu lugar ao adesismo e à bajulação (a acomodação de interesses não é privilégio do jornalismo, evidentemente).

Atravessadores de informação

O imperativo industrial e o enxugamento de equipes enclausurou jornalistas nas redações, inibindo seu contato com o mundo. No atual modelo, se a informação não chega na redação é porque o assunto ou não importa ou não existe. A reportagem é um método de trabalho em extinção.

Nesta via de mão única da apuração passiva, o contato entre o jornalista e o fato é mediado, 90% dos casos, pelo assessor de imprensa – braço jornalístico mais próximo da publicidade, talhado para vender diferenciais, em forma de idéias ou produtos. Mediado pelas assessorias de imprensa (empresas especializadas em ressaltar virtudes e relativizar fragilidades), o jornalismo cultural tem se embebido crescentemente em artifícios propagandísticos.

Não se trata de demonizar o assessor de imprensa. No atual formato ele é um aliado, quase mesmo indispensável. O que se busca aqui é ressaltar esta relação como mais um exemplo de acomodação.

A “notícia” (com muitas aspas) que bate no computador, no fax ou no telefone de uma redação, filtrada e formatada em argumentos forrados de superlativos (o que vende mais, o mais caro, o mais bonito, o mais premiado etc.) ou no marketing da superação de deficiências (o mais barato, feito com as menores condições, em locais inadequados etc.) não precisa ser desconsiderada.

Deveria, isto sim, ser um elemento a mais no repertório de temas e abordagens – ou seja, no conjunto do que se poderia chamar de diversidade jornalística. Quando impera e dá o norte e o tom, restringe possibilidades, ainda que se ofereça travestida de opção. Embalada em atrativos lisonjeiros e direcionada (sem muita resistência) para o bate-papo frugal, qualquer entrevista perde o potencial reflexivo que poderia gerar. (Mas desde quando jornalismo tem parentesco com filosofia?)

Hierarquização do preconceito

Princípio básico do jornalismo, a hierarquização de assuntos vem sendo usada de maneira pouco criteriosa. Do jeito que é praticada hoje na área cultural, serve para mascarar a ignorância e reafirmar o preconceito. Atende com mais freqüência à legitimação do gosto individual que ao interesse jornalístico. Ou, dito de outra forma, à exaltação das “verdades” de certo gueto.

O que se professa é que um caderno (programa, revista ou o que for) sem “cara” definida tende a ter seu interesse esvaziado. Se isso é verdade, não é um problema apenas empresarial, mas jornalístico também. Mas em nome do “endereço certo” do leitor, seria justificável omitir ou esconder certos assuntos? Ou antes: alguém sabe mesmo o que este suposto leitor quer e se o fato de ele querer isso exclui aquilo?

Jornalismo não é algo que se possa dizer palpável. Pesquisas e sondagens à parte, muito do que se faz ainda hoje é baseado no feeling – leia-se, no que se imagina, a partir da média de acertos e erros. Centrar a cobertura numa “verdade estética” ou noutra e, por decorrência, ignorar as demais, é no mínimo desrespeitar a capacidade de discernimento do cliente. Não é o caso de vitimizar o leitor simplesmente. Enquanto houver livre arbítrio haverá sempre outra publicação ou emissora como opção. Mas será que a melhor saída é mudar de igrejinha?

O mercado, este “vilão” sem corpo, não é passivo, como se sabe. Sabe ajustar-se às possibilidades que tem. Na área cultural, e no Brasil, é particularmente visível como o modo de se processar e fazer circular bens culturais se nutre das deficiências do jornalismo e usa truques para obter visibilidade na cobertura cultural.

Afora isso, em nome do que no jargão se chama de “furo”, gerou-se um “negócio paralelo”, um “seqüestro do assunto em primeira mão” que transforma o assunto em refém e pede como resgate a melhor das visibilidades.

Os dois lados valem-se disso. Ao assessor de imprensa cabe devolver em mídia espontânea o investimento do cliente ao contratá-lo. É o que ele, cliente, espera. Ao jornalista de redação, entregar ao leitor antes que os demais jornais (ressalte-se: como se faz hoje, basta que seja antes, não melhor) um assunto relevante. Com o tempo, nos últimos anos, o que mudou foi só o tamanho da cara de pau, dos dois lados.

O assessor de imprensa, de seu lado, elege o veículo que, imagina, fala a uma parcela maior do público visualizado pelo artista ou espetáculo que divulga. Liga oferecendo o assunto, quase sempre com um “se” – se o jornal publicar no dia tal, com tal visibilidade (normalmente capa, no caso dos diários). Na mão invertida, o jornalista, em geral com orientação superior, usa da mesma moeda quando identifica assunto de seu interesse. “Daremos bem, caso seja só nosso.”

É uma espécie de tráfico da primeira mão instituído, um anabolizante injetado pela chantagem consentida. Não raro, dá mais visibilidade ao assunto do que ele normalmente mereceria. Mas não só. Selado o pacto, tanto faz o que o entrevistado vai dizer, porque a visibilidade já está assegurada. Se vai haver interesse jornalístico no que vai ser dito é só um detalhe. A “grife” fala por si. Ou pelo menos chama atenção.

Quem, num sistema cheio de arranjos, se indisporia com o entrevistado fazendo-lhe perguntas incômodas? (Isso ao menos, por certo há – ainda que seja minoria.) Na dúvida, a lista de exigências do “sequestrador” freqüentemente inclui eleger ou vetar certo entrevistador. A falta de pudor envolve até mesmo a indicação de Fulano ou Beltrano, “que gostam do artista ou assunto”. Com alguma sutileza, poderia-se sugerir alguém que “conhece” o assunto – mas o objetivo é publicitário, não jornalístico.

Mediada por tantos interesses, gostos pessoais e podes e não-podes, a cobertura cultural se afasta progressivamente do seu parentesco com o jornalismo. Esperar que contemple a diversidade, neste contexto, é não mais que utopia – que pode morar, quem sabe, numa radicalização ainda maior da segmentação e da distribuição dirigida. Ou seja: na internet.

Nota do Editor
Israel do Vale é, atualmente, diretor de programação e produção da Rede Minas, a TV educativa de Minas Gerais, e também editor do laboratório multimídia do Rumos Jornalismo Cultural, do Itaú Cultural. Este texto, gentilmente cedido pelo autor, foi extraído do livro Diversidade Cultural.

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Israel do Vale
São Paulo, 28/11/2005

 

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