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Segunda-feira, 5/12/2005
A dança das imagens de Murilo
Pedro Maciel

O poema é feito de palavras, medida e ritmo (poesia é devaneio, mas com método); é a transformação da vida em palavra – mas é melhor transformar a vida em poesia do que fazer poesia com a vida. Murilo Mendes (1901-1975), mineiro de Juiz de Fora, é um desses poetas que trata a poesia como uma idéia do imaginário.

Poeta é aquele que sabe que o universo é inocente mesmo quando sepulta um continente ou incendeia uma galáxia. Pode-se dizer que o poeta é, sobretudo, aquele que recomenda sonhos, que prefere “a nuvem ao ônibus”, que sabe que “o tempo é refratário, apócrifo, redondo” e, que, ainda assim, espera que “o anteontem prepare as rodas do amanhã”. Murilo tinha consciência de que “sem esperança não surge o inesperado”.

Outras gerações começam a redescobrir o poeta que sabia que viver a poesia é muito mais necessário e importante do que escrevê-la: “O sofrimento dos poetas, dos artistas e dos santos torna-se o estrume espiritual da humanidade”.

As metamorfoses (1944), Poesia e Liberdade (1947) e Tempo Espanhol (1959), (Ed. Record), relançados por agora, em comemoração ao centenário de nascimento, é antes de tudo uma mostra de que a poesia não é apenas uma operação da linguagem, mas uma experiência de vida.

Poesia e Liberdade é reflexo dos tempos da guerra: “a terra chove suor e sangue”; “projeto estético” associado a um “projeto ideológico”, “concepção de poesia como uma linguagem universal da experiência humana”.

Tempo Espanhol, segundo Júlio Castanõn Guimarães, apresenta poemas “em que se entrecruzam a rebeldia, a religiosidade, o inconformismo, a criatividade, a sensibilidade de uma Espanha cujo horizonte é a história. Uma história pontuada por seus pintores, toreadores, poetas, místicos, por sua arquitetura, seus ritos, suas paisagens.”

Fábio de Souza Andrade abre As metamorfoses afirmando que há três matrizes estético-ideológicas na poesia de Murilo: “o filtro de um humor irônico, a liberdade das associações surrealistas, e um catolicismo sensualista e pouco ortodoxo”. E acrescenta que As metamorfoses, livro central em sua produção, “abre-nos de par em par as portas de um universo poético em pleno vigor, onde a realização lírica não fica aquém de sua ambição máxima.”

Mendes é também conhecido como um remanescente da vanguarda do século 20. O poeta trabalhou com colagens surrealistas nos anos 30. Por volta dos anos 50, o poeta investe em textos que se aproximam do cubismo, a partir de temas contraditórios, como a espiritualidade, coloquialismo e sensualismo.

A poesia de Mendes é uma dança das imagens, jogo hedonístico, dicção antropofágica, sopro metafísico, fala atemporal. A grandeza de Murilo é verbal, visual e sonora. Poeta da consciência cósmica, do transcendental, do abismo da história, das elocubrações metapoéticas, das imagens apocalípticas, do pensamento selvagem, dos aspectos mais cotidianos do mundo humano.

Mendes influenciou profundamente a linguagem antilírica de João Cabral de Melo Neto. Carlos Drummond, Manuel Bandeira e Jorge de Lima são os três poetas que mais dialogaram com Murilo. “Mendes é o maior distribuidor de poesia que jamais conheci”, declarou Jorge de Lima.

Outra grande influência de Murilo se deu através da amizade com Ismael Nery, pintor, arquiteto e poeta. Em Recordações de Ismael Nery (Ed. Edusp) coletânea de textos de O Estado de S. Paulo, e do Jornal da Manhã, do Rio, Murilo disseca a vida e obra de Ismael. Ismael Nery foi quem converteu o anárquico e visionário Murilo Mendes ao catolicismo.

Recordações de Ismael... fala, sobretudo, de um grupo de amigos que girava em torno de Nery. Os mais fiéis eram Mário Pedrosa, Jorge Burlamaqui, Guignard e o próprio Murilo Mendes. A conversa quase sempre se estendia em torno da filosofia de Ismael, batizada por Mendes como “essencialismo”, uma espécie de sistema filosófico preparatório para o catolicismo, investigação filosófica das coisas essenciais através da abstração do tempo e do espaço.

Murilo Mendes legou muitas imagens à memória dos leitores. Mas há críticos que o classificam como poeta metafísico, poeta concreto, poeta modernista, ou apenas poeta surrealista. Não há como classificá-lo, já que a diversidade de estilos é o que caracteriza a sua obra.

Na “Microdefinição do autor”, o poeta diz que pertence “à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das idéias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história”.

Poemas de Murilo Mendes

"Joan Miró"

Soltas a sigla, o pássaro e o losango,
Também sabes deixar em liberdade
O roxo, qualquer azul e o vermelho.
Todas as cores podem aproximar-se
Quando um menino as conduz no sol
E cria a fosforescência:
A ordem que se desintegra
Forma outra ordem ajuntada
Ao real - este obscuro mito.

(Do livro Tempo Espanhol, de Murilo Mendes.)

* * *

"Abismo"

Todos me indicam o caminho contrário.

Bebi na música
E fechei-me a sós com o sonho.

Quando acordei
Haviam destruído os gramafomes
E a treva anterior envolvia a cidade.

O mar passava nos braços
Uma pulseira de mortos.

Abri um pé de magnólia
Dando sombra ao Minotauro.
Desde então
Um peito é zona de guerra,
Fiz um eixo com as estrelas.
A poesia em pára-quedas
Tanto desce como sobe.

(Do livro As metamorfoses, de Murilo Mendes.)

Nota do Editor
Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no caderno “Idéias”, do Jornal do Brasil, em 15 de junho de 2002.

Pedro Maciel
Belo Horizonte, 5/12/2005

 

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