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Segunda-feira, 2/1/2006
E Plácido gravou o Tristão...
Lauro Machado Coelho

Enfrentar pela primeira vez, passada a marca dos 60 anos, um dos papéis mais difíceis do repertório é um desafio temível. Plácido Domingo o encarou no Tristão e Isolda, álbum da EMI Classics, regido por Antonio Pappano, que já está disponível em nossas lojas especializadas. Foi um processo gradual e cauteloso de incorporação, à sua lista de personagens, das grandes criações wagnerianas, iniciado em 1975 com o Walther, dos Mestres Cantores, até chegar, em 1992, ao Parsifal. Falta agora apenas o Siegmund da Valquíria, que Domingo fez várias vezes no palco, e de que já gravou alguns trechos.

É uma cautelosa gravação de estúdio, dirão os wagneritas mais intransigentes, cercada de procedimentos que atenuam as dificuldades que oferece o papel. É verdade: este é um personagem que Domingo nunca teria cantado fora do estúdio. Mas, ao fazê-lo, investe nele as qualidades de timbre privilegiado, musicalidade, inteligência interpretativa e desenvoltura como ator que fizeram dele o tenor mais completo da segunda metade do século 20.

O conhecedor da carreira de Domingo sempre soube que ele teve dificuldades no extremo agudo do registro. Mas isso nunca o impediu de fazer, de forma extremamente convincente, papéis muito árduos para ele, como o Manrico do Trovatore. Mais do que isso, Domingo foi perfeitamente capaz de incorporar a seu repertório personagens que não eram naturalmente indicados para o seu tipo de voz. O maior exemplo disso é o Otello, de Verdi, que se tornou uma viga mestra de sua carreira, e do qual ele ofereceu, inúmeras vezes interpretações de extrema originalidade. Outro é o Don José da Carmen, que ele converteu em “o seu papel”. Além disso, que outro tenor contemporâneo teve a preocupação em ampliar constantemente o repertório? Que outro cantor, na faixa de idade em que Domingo se encontra, teria a coragem de somar à sua lista de personagens o Sly, de Wolf-Ferrari e o Cyrano de Bergerac, de Alfano – obras raras, nas quais muitos tenores não teriam interesse em investir.

O Tristão de Plácido Domingo é admirável, porque ele o faz respeitando as características e as possibilidades de seu instrumento – da mesma forma que aconteceu, em sua gravação do Canto da Terra, de Mahler. Há algo de muito apaixonado em esse Tristão ser feito com a incandescência de um timbre de técnica italianada, sobretudo nas passagens líricas, em especial em “O sink hernieder, Nacht der Liebe”, no coração do dueto de amor do segundo ato, que ele realiza de forma comovente.

Domingo não é um Heldentenor típico. Não tem o timbre escuro e a pasta vocal sólida de um Ludwig Suthaus; nem a extensão vocal e o timbre heróico de um Jon Vickers. Mas a inteligência do artista não o leva a tentar aquilo que sabe não ser capaz de fazer. O resultado disso é Domingo sair-se melhor do que se poderia esperar no assustador terceiro ato, em que Tristão, ferido por Melot, espera por Isolda. Nesse interminável monólogo, é notável a sutileza com que ele trabalha a flutuação emocional do personagem, da angústia à esperança e à sensação frustrada de que Isolda não virá mais. Domingo dá à grande criação wagneriana aquela mesma complexidade humana, misto de força heróica e vulnerabilidade, que tornava fascinante a sua composição do Otello.

É extremamente bem cuidado o álbum da EMI, que já foi anunciado como a última grande gravação de ópera em estúdio. Foram escalados, no elenco de apoio, cantores excelentes: o liederista inglês Ian Bostridge, como o Pastor que surge no início do ato 3; o mexicano Rolando Villazón, tenor de carreira em ascensão, como o Marinheiro que dá início à ópera. Mas, principalmente, o baixo René Pape que, no vídeo recente do Metropolitan, demonstrou ser um dos melhores intérpretes atuais do rei Marke.

Por que, então, escolher, para o papel central de Isolda, uma cantora como Nina Stemme, da qual não se pode realmente dizer que seja medíocre – o timbre é bonito, a emissão correta, a musicalidade está presente –, mas que não chega a construir, da princesa irlandesa, um retrato que se ombreie ao do Tristão que tem a seu lado? Nas passagens líricas, até que ela não se sai mal. É no furor da Narrativa e Maldição do primeiro ato, ou na ansiedade da espera pelo amado, no início do segundo, que sentimos o quanto lhe falta daquela energia, daquela vibração que tornavam inesquecíveis as leituras de Kirsten Flagstad (na versão Furtwängler de 1952) ou Birgit Nilsson (na gravação ao vivo de Karl Böhm, em 1966).

Mesmo no “Mild und leise”, o mágico monólogo do final, nada há, na execução de Stemme, que esteja fora do lugar; nada há que realmente possa ser apontado como inadequado; apenas há algo de impalpável que parece não estar lá, aquele “não sei quê” que até mesmo Margaret Price (Carlos Kleiber, 1982), que se encontra num plano diferente do de Flagstad ou Nilsson, consegue captar.

Contribui para desequilibrar o elenco a Brangäne neutra de Mihoko Fujimura, aceitável no “Wacht auf”, a advertência do segundo ato – ainda que sem o brilho inesquecível de uma Christa Ludwig, é claro – mas ficando a dever cada vez que o papel exige dela mais energia. Quanto ao liederista Olaf Bär, ele faz um Kurwenal bastante persuasivo, na linha do criado por Fischer-Dieskau, no álbum Furtwängler, embora com as devidas alterações vocais devidas a um estágio mais maduro de sua carreira.

Antonio Pappano, à frente do Covent Garden, rege de forma competente. Não tem a urgência quase histérica de um Karl Böhm nas passagens mais fortes do primeiro ato, ou na primeira seção do dueto de amor. Mas encontra acentos líricos muito convincentes para a seqüência em que ambos aceitam a paixão que já tinham um pelo outro; e para o feitiço melódico do “Sink hernieder”. Sobretudo, Pappano oferece a Domingo o apoio orquestral que lhe permite fazer, no terceiro ato, uma criação músico-dramática na qual reconhecemos a presença de um grande artista.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em novembro de 2005.

Lauro Machado Coelho
São Paulo, 2/1/2006

 

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