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Segunda-feira, 9/1/2006
A arte assombrada
Pedro Maciel

“Para mim o mistério, o fantástico, existe no cotidiano e é um elemento que respiro com prazer. Adoro filmes de horror, de preferência vampiros. Só leio ficção científica e acredito firmemente na existência de outras dimensões e de infinitos universos paralelos. Acredito também que fadas, gnomos, anjos, demônios são todos habitantes de outras dimensões que atravessam a barreira e surgem no mesmo mundo. Eles deram origem aos nossos mitos ancestrais, o mito do anjo, o mito do demônio. Do bem e do mal”.

As palavras são de Farnese de Andrade, em depoimento inédito de 1976. A partir deste depoimento revelador, pode-se entender a obra e a história de vida do artista. Farnese de Andrade (1926-1996) passou a vida debatendo-se com fantasmas, sonhos e obsessões.

Os objetos do artista revelam os extremos da vida, como a fecundação, germinação, nascimento e morte. Desenhista, gravador, escultor e pintor, é também conhecido como um dos pioneiros da invenção de objetos no Brasil. Desde o início dos anos 60, o artista apropria-se de detritos encontrados em praias, restos de demolições, fragmentos de fotos, oratórios populares, ex-votos e gamelas para criar seus objetos.

O drama de Farnese de Andrade (Ed. CosacNaify), uma espécie de iluminista das sombras, passou-se entre os sentimentos de estranhamento e opressão em relação à religião, à família e à sexualidade. Acreditando ultrapassar o conteúdo da existência que teria quase se esvaído por obra de uma grande angústia, Farnese permaneceu, entretanto, preso ao passado e à sua biografia, a fim de restaurar o seu pensamento atormentado. Recria com as suas soturnas assemblages (obras criadas a partir da justaposição de objetos naturais ou fabricados) uma arqueologia existencial.

“Conheço pouca coisa mais triste do que os trabalhos de Farnese de Andrade”, anota Rodrigo Naves, no esclarecedor texto de apresentação do artista. E prossegue: “Essas cabeças de boneca arrancadas ao corpo lembram maldades da infância. As madeiras gastas de seus trabalhos guardam um tempo esponjoso, que se acumula sobre os ombros e nos paralisa os movimentos. As fotografias e imagens presas nos blocos de poliéster falam de um passado que nos inquieta, mas que não podemos remover ou processar, já que não mais nos pertence.”

Pode-se afirmar que a linguagem barroca de Farnese, além de recuperar as qualidades do ornamental e do cenográfico, busca revelar a essência do tempo. “Seus trabalhos, em vez de serem uma montagem de objetos e imagens, são na verdade uma colagem dos tempos, que, no entanto, tendem sempre a se instalar numa região do passado a que não teremos mais acesso. O mundo da infância, as proibições dos adultos, as interdições imemoriais se reúnem num só espaço, fundem-se, unificam-se de tal forma que jamais poderão ser desvendados. Resta sofrer. Remoer interminavelmente essas culpas sem expiação, essas faltas por que não somos responsáveis, mas que nos vergam sob seu peso”.

O mundo inconsciente, o acaso, os sentimentos afetivos, a religiosidade, e, principalmente, o tempo são matéria-prima de toda obra do artista. Não o tempo de Heráclito que, perplexo com o problema do tempo, pergunta: por que ninguém desce duas vezes o mesmo rio? E nem o tempo do poeta Boileau que diz que “o tempo passa no momento em que algo está longe de mim”.

O que se revela de forma surpreendente nesta obra é que Farnese viveu recolhendo sensações perdidas, memórias inconfessáveis ou coisas imaginadas para traduzir a nostalgia de outros mundos.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente em 13 de julho de 2002, no caderno “Idéias”, do Jornal do Brasil.

Para ir além





Pedro Maciel
Belo Horizonte, 9/1/2006

 

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