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Segunda-feira, 3/4/2006
Jean Genet no Brasil
Ruth Escobar


Jean Genet por Siegfried Woldhek

Jean Genet chegou numa manhã de sol, em junho de 1970. Os jornalistas acotovelavam-se no aeroporto. Ele passou rosnando, bufando, azedo; mal me cumprimentou. Caminhava tão rapidamente que eu me desequilibrava nos meus saltos altos. Trouxe-o para casa. Excitava-me ter em meu convívio o autor de minha grande obra.

Estava grávida de três meses de meu filho Nelsinho, e preparávamos a atriz que me substituiria até o parto. Genet participava com volúpia de todas as fofocas do elenco e tinha sempre saídas estapafúrdias para os problemas. Dentro de casa portava-se ora como o vovô de minhas filhas Rutinha e Inês, ora como uma criança temperamental. Na época, as más línguas espalhavam que ele não gostara do espetáculo, o que não é verdade. O teatro não mobilizava mais Jean Genet. Dizia que o teatro estava morto, recusou-se a ver os integrantes do Living Theatre que foram visitá-lo em casa, nem sequer aceitou receber Julian Beck ou Judith Malina. Sua loucura agora, dizia, era “la politique”.

Conversávamos até de madrugada, ele não se cansava de contar-nos histórias da prisão e suas aventuras no exército francês na Argélia. Nunca me preocupei em averiguar se Genet realmente fizera o serviço militar, mesmo porque suas histórias eram absolutamente irreais, semelhantes a um filme do Gordo e do Magro no exército. Ríamos até a histeria; Genet se deliciava e contava mais. Tinha insônia, só quebrada à custa de soníferos. Às vezes, de madrugada, surpreendia-nos invadindo nosso quarto, enfiando-se em nossa enorme cama D. João V, esfregando as mãos de contente, como quem está aprontando o maior rebu, e dizendo: “Alors, les enfants, on va bavarder! Assez dormir, vous avez l’éternité pour dormir!

O pior não era quebrar o sono, mas o chulé que se espalhava pelos lençóis. Eu reclamava:

– Jean, de novo você não lavou os pés antes de dormir!

Ele ria, adorando: “Mas é bom este cheiro, é do melhor queijo francês, autêntico port-salut”.

Eu saía tonta da cama, apanhava uma toalha embebida em água quente e sabão e, feito Maria, lavava-lhe os pés brancos, alvos qual leite.

Durante os dias em que ficou em casa, os pedidos de autógrafos e entrevistas nos martirizavam, porque ele se recusava a receber qualquer pessoa. Quanto aos autógrafos, ensinou-me a copiar sua assinatura e me estimulava a falsificá-la. Quando eu retorquia que isso era estelionato, ele atacava: “Não seja idiota, a vida é um estelionato”.

Um dia, fomos surpreendidos por um telegrama de Maria do Carmo Sodré, esposa do governador de São Paulo naquela época, que demonstrou interesse em recebê-lo. Jean desandou um rosário de palavrões e insultos contra a ditadura no Brasil, até que o convenci a visitar a esposa do governador para prestar um serviço à Resistência. Expliquei que Maria, vulgarmente conhecida como “a Tia” e costureira de Lamarca, estava presa com a atriz Nilda Maria no presídio Tiradentes. Durante a ação, seus netos haviam sido carregados para uma unidade da Febem, que ninguém sabia qual fosse. Era a oportunidade de encontrá-los através da primeira-dama. Jean cedeu e, durante a audiência, mesmo esforçando-se ao máximo para ser polido e cortês, investiu com tanta veemência contra a selvageria das ditaduras que Maria Sodré no mesmo instante telefonou e colocou a Secretaria de Segurança na pista das crianças. Em quarenta e oito horas eram localizadas em duas unidades da Febem e eu levava a notícia para a avó, no presídio Tiradentes. Maria deu uma carta entregando-me a guarda de seus netos, mas meu desejo e sua vontade não foram atendidos pelo juizado de menores, que alegou minha situação de desquitada. Dali a algumas semanas o seqüestro do embaixador Elbrick retirava setenta presos políticos da cadeira, inclusive Maria e seus netos, que viajaram para a Argélia em troca do refém.

Também levei Genet ao presídio Tiradentes para visitar Nilda Maria, a atriz que interpretava Chantal, a revolucionária. Nunca soube se minhas entradas no presídio Tiradentes se deram graças à desorganização do presídio ou à ignorância da minha identidade, pois nos meus documentos constava Maria Ruth dos Santos. Quanto a Genet, na ficha de visita coloquei-o como tio afastado de Nilda, casado com uma tia que emigrara para a França. O personagem de Genet saltava do palco e encarnava na vida. Ficção e realidade eram uma só história. Finalmente nada havia a inventar. Nilda soluçava nos braços do “tio” Genet, o mito do século, o autor de sua história e de sua personagem. Na semana seguinte eu era proibida de entrar no Tiradentes. Certamente nossa aventura chegara aos escritórios do Doi-Codi.

Antes de Jean ir embora, recebemos a visita de um jovem francês que havia sido seu grande afeto, um corredor de automóveis com quem ele foi se encontrar em Mato Grosso. Jean era reservado sobre sua vida pessoal e nunca nos deu muitos detalhes sobre o jovem corredor, a não ser que havia tido um acidente muito grave e fora seu grande amor.

Jean me inoculou a angústia eterna dos que vivem nas trevas e no limite da vida, a angústia dos delinqüentes por falta de amor. Ele me ensinou a ternura pagã pelos criminosos, pelos marginais, pelos anatematizados. Durante anos tentei entender esse outro mundo levando meus espetáculos por trás das barras, até enfiar-me num projeto de ressocialização e humanismo dentro da Penitenciária do Estado. Quando me faltavam forças pensava em Genet, em sua história de amor e maldição.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela editora Nova Fronteira. Publicado originalmente na apresentação do livro Diário de um ladrão, do dramaturgo francês Jean Genet (1910-1986), relançado agora em 2006.

Para ir além





Ruth Escobar
São Paulo, 3/4/2006

 

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