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Segunda-feira, 12/6/2006
Vontade de fazer arte
Paula Mastroberti

Peço mil desculpas. Mas é que, aos dois anos de idade já mostrava incrível habilidade com o desenho. Meus pais se entusiasmaram comigo, logo compraram cadernos, lápis de cor e outros "brinquedinhos" do gênero. Minha mãe sempre gostou de arte. Colecionava aqueles fascículos da Abril Cultural – quem lembra? Gênios da Pintura. Meus pintores preferidos na infância: El Greco, Ensor, Van Gogh, Klimt. Caravaggio. Ah, sim, Bosch! Brueguel! Sei lá, tantos...

Tentava imitá-los.

Devo ter sido uma das poucas da turma do colégio absolutamente convicta da primeira opção para o vestibular: artes plásticas. E não porque a média era das mais baixas. E, certamente, não porque esperasse ganhar horrores de dinheiro. Sequer me passou pela cabeça ser mais pragmática e optar pela licenciatura. Não, eu entrei de cabeça no bacharelado, mesmo.

Quatro anos e meio de curso. Estudei e aprendi a desenvolver o talento criativo explorando inúmeras técnicas, das mais tradicionais às mais inusitadas. Fiz parte do time que integrou a geração oitenta gaúcha e minha primeira individual foi um sucesso. As portas se abriam para mim.

Eu poderia ter ido muito longe, do ponto de vista de mercado. Contudo, preferi manter certa liberdade e assumir sozinha minhas experiências poético-visuais sem ter que prestar contas ao sistema de arte vigente. Quando todos pensaram que eu ia assumir uma fórmula, eu comecei a partir pra outra. Abandonei lobbies, salões, mas mantive minha credibilidade, porque minha atitude profissional sempre foi séria e reflexiva, independente da quantidade de linhas no meu currículo. Foi, como eu disse, uma opção tranqüila e de ordem pessoal, de uma profissional que preferiu fazer as coisas ao seu modo, no seu ritmo. Além disso, surgiu aí pelo meio uma carreira literária, mas isso já é outra história. E isso não quer dizer que eu desconfie de artistas bem-sucedidos dentro do sistema.

Por que é que eu estou me abrindo desse jeito?

Por duas vezes defendi a arte contemporânea (ou como queiram chamá-la) neste veículo. Por duas vezes tenho insistido na idéia de que a arte sobrevive após, ou pós-tudo. Que mil decretos sobre o fim ou a crise da arte não matarão a vontade do ser artista, que sente dentro de si este impulso que o domina e dá sentido a sua vida. Ainda que eu não esteja criando concretamente, fundamentalmente minha questão é a arte e a estética, meu pensamento volta-se para isso a todo momento, minhas mãos, meus olhos e meu cérebro pedem ocupação neste sentido. A matéria me instiga, a cor me instiga, texturas me instigam, as formas são o revestimento que busco para as minhas idéias e meu deleite. Ah, e tem mais: não sou a única. Há mais gente como eu, espalhada por aí. E agora? Que crítico, que intelectual, que diabo poderá dizer que somos um equívoco? Que deveríamos mudar de profissão? Não tenho eu o direito de me expressar livremente, usando das formas que eu quiser, das tintas ao computador? Não tenho eu o direito de escolher a mídia que penso ser a mais adequada?

Quem vê a arte pelo lado de fora, adora citar equívocos. Por que não se referem aos acertos? Ou será tudo acerto na literatura? Na música? No cinema? Por que a arte tem que carregar o estigma de sempre ser a expressão concreta de um ideal absoluto e ultrapassado? Não pode a arte ser menor de vez em quando, não pode ser anárquica ou divertida, leve ou complicada, plural em oferecer diversas opções de entretenimento como tantos filmes, livros, tantas músicas que torram o nosso saco na rádio e todo mundo perdoa e esquece? Por que exigimos de todos os artistas que eles sejam Leonardos, Monets, Picassos? E por que somente estes? E por que, pergunto eu, ao se referir à arte, se pensa somente em pintura? Pelas possibilidades decorativas? Pela linguagem aparentemente mais compreensível? Compreensível pra quem? Por que não aceitamos que Duchamp, queiram ou não, é um marco, uma referência, simplesmente dizendo, "bem, ele fez o ready-made e o Grande Vidro, bacana, tudo bem, não vamos morrer por causa disso". A verdade é que, depois de Duchamp e dos dadás, continuamos a pintar, a esculpir, a instalar, a interferir até mesmo nos espaços cibervirtuais. A arte não acabou, porque há muito ainda a dizer, há novidades visuais sobre as quais nos sentimos obrigados a refletir.

Por que não perdoamos em Duchamp a mesma dissolução do sujeito observada em Joyce?

Enquanto tapamos os buracos das outras formas de expressão defendendo mediocridades com resenhas repletas de tapinhas nas costas, retalhos de frases pós-estruturalistas e citações estagnadas no vício de conceitos já obsoletos, as artes plásticas perdem em virtude da ausência de uma voz que faça circular e torne alguns artistas da nossa época tão populares quanto certos poetas ou romancistas, músicos ou atores. No mais, ela é como qualquer outra via: há coisas ruins na arte contemporânea, ou como-querem-que-a-chamem. E há muita ignorância e intolerância em relação a ela também (a segunda, é claro, só poderia ser resultado da primeira). Todo mundo gosta de falar mal, mas poucos analisam o assunto em seu cerne, que é tão profundamente humano, tão condicionado histórica e socialmente quanto qualquer outra área cultural.

Alguém aí já ouviu falar de Tunga? De Regina Silveira? De Daniel Senise? Quem tiver algo contra estes nomes, que atire a primeira pedra. Eles incidem contra o seu gosto? Contra o seu conceito de Belo? Ora meu amigo e minha amiga, gosto e beleza é questão efêmera, a Gisele Bündchen de hoje pode ser o tribufu de amanhã.

Não há como fazer uma revisão crítica da arte contemporânea, simplesmente importando teorias de outra área, como querem alguns intelectuais da literatura, sem levar em conta suas especificidades. Mesmo estas teorias mal parecem dar conta das obras literárias que pretendem analisar, e não há nenhum consenso entre elas, assim como não há consenso na crítica, nem nas instituições acadêmicas, que privilegiam determinados estilos, autores ou gêneros conforme a sua ideologia.

Portanto, amigos, não há como matar a arte, e não há por que ressuscitá-la, uma vez que ela sempre esteve e estará muito viva, enquanto nascerem crianças cujo sonho é ir além de ganhar aquela graninha certa num emprego burocrático.

Eu, por exemplo, estou aqui, sou uma voz, e não estou morta.

Ah, e gosto de Duchamp. E agora?

Nota do Editor
Paula Mastroberti é artista plástica e assina o artesite que leva seu nome.

Paula Mastroberti
Porto Alegre, 12/6/2006

 

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