busca | avançada
75378 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Segunda-feira, 28/8/2006
Sartre e a idade da razão
Beatriz Resende

Transferir-se do primeiro para o segundo andar do Colégio de Aplicação, naquele momento ainda da Faculdade Nacional de Filosofia, hoje da UFRJ, significava mais do que passar de ano, trocar de sala ou ingressar nos estudos de segundo grau, seqüência natural na vida de uma estudante.

Era mesmo bem mais do que isso. Significava iniciar-se numa espécie de seita, preparar-se para cumprir uma série de rituais de passagem, esforçar-se para merecer fazer parte de um restrito conjunto de escolhidos pelos deuses. Pelos corredores do bloco da frente do prédio maltratado, moviam-se apenas as três turmas (uma de cada ano) daqueles que tinham escolhido mudar o mundo, pois esta era nossa função sobre a Terra, a partir de estudos ligados às humanidades.

Às vésperas do golpe militar, o CAP era uma verdadeira escola de quadros, história e geografia eram as matérias mais prestigiadas, seus professores, os mais populares, e usar o Manifesto comunista como livro didático parecia ser bastante natural. Não podíamos imaginar quantos de nós, não muito tempo depois, teriam que deixar este país que estavam determinados a mudar, quantos seriam presos, quantos seriam torturados.

O problema maior para a garota miúda que acabara de subir as escadas era descobrir um modo de provar que não era apenas uma fedelha e que poderia pertencer àquele clube seleto de onde acabaria saindo, realmente, expressiva parte da intelligentsia do país. Como poderia alguém sistematicamente barrada em cinemas e bares (boate nem pensar) dividir experiências com aqueles seres extraordinários que sabiam absolutamente tudo de tudo? Como sobreviver e ser minimamente feliz sendo a menor? Que fazer além de deixar os cabelos crescerem até a cintura? Na falta de outro, resolvi usar o cacife que tinha para ser colocado na mesa, o mesmo de sempre: a literatura. A literatura brasileira era o meu capital maior, afinal crescera praticamente dentro da biblioteca pública de Botafogo, naquele tempo bastante completa, e tinha esgotado o estoque das prateleiras. Livro era sempre um presente que gostavam de dar, mas era preciso submeter-se à censura do comprador. Ummmmm... O encontro marcado? Carlos Heitor Cony? Mas sempre dava para descolar. Uma coleção tipo Clube do Livro aparecia em casa com os deliciosos romances folhetinescos de Dumas e outros, além dos romances históricos de Conan Doyle, que muita gente perde por achar que ele só tratava de Sherlock Holmes. Deixaram marcas indeléveis. Flaubert, Stendhal e Dickens me acompanhavam lidos até durante as aulas, debaixo da carteira, mas, na verdade, não era com O vermelho e o negro que eu ia causar lá grandes impressões.

Os anos 1960 produziram uma literatura fantástica no Brasil, mas havia um problema para os jovens: tudo soava muito exclusivo do “mundo adulto”. Os cronistas revitalizavam a linguagem literária, mas falavam de um universo meio esquisito, com uísque demais. Só muita consciência política podia fazer com que nos debruçássemos sobre Graciliano, o grande autor que parecia já ter nascido com uns 30 anos, ou seja, o máximo de idade que alguém capaz de fazer alguma coisa inteligente poderia ter. O problema maior era como conhecer a vida, a vida mesmo, a vida de verdade, através de livros, como conhecer o mundo lendo algo que se passasse no presente e fosse escrito com uma linguagem normal? Como encontrar um autor que se preocupasse com o mundo, mas também com o desejo que uma garota podia ter de ser dona de seu destino? O cinema parecia ser um caminho mais fácil, só que livro é livro, para mim uma necessidade.

A essas alturas, já dava para freqüentar ao menos um cineminha que havia no final de Copacabana, o Cine Alvorada, que, além de ser cinema de arte, tinha um porteiro que não pedia carteirinha. Bendito porteiro que não olhava para a cara das meninas, ser-lhe-ei eternamente grata por tal discrição em tempos em que se achava que até os filmes de Bergman tinham alguma coisa de indecente. A nouvelle vague do cinema francês demorou um pouco, mas chegou, e a França aparecia como o lugar da ruptura com os valores burgueses, com o moralismo, com as proibições.

Afinal, ainda que pudéssemos suspirar pelo socialismo, achar que a Universidade Patrice Lumumba, em Moscou, deveria ser fantástica, a sedução mesmo continuava vindo de Paris, por mais que os estudantes de lá achassem tudo uma velharia.

Foi então que nos corredores do segundo andar começou-se a falar muito em Sartre.

O filósofo havia estado no Brasil em 1960 e depois disso suas obras começaram a ser traduzidas e publicadas entre nós.

Foi preciso ir ao centro da cidade, aquele espaço dos homens de paletó e gravata, para conseguir a trilogia Os caminhos da liberdade, composta pelos romances de Jean-Paul Sartre: 1. A idade da razão; 2. Sursis; 3. Com a morte na alma.

Foi então que meu mundo foi abalado de uma forma absolutamente definitiva.

A idade da razão, primeira obra de Sartre que li, foi um terremoto de muitos graus, um tsunami dentro da minha cabeça.

No início do romance, um trem apita e o personagem principal, Mathieu Delorme, pensa: “estou velho”. Tem 34 anos e é um professor de fi losofi a sem dinheiro, atravessando o tempo todo o Quartier Latin, em Paris. Há sete anos tem uma namorada – amante, se diria –, que está grávida. É preciso arranjar um monte de dinheiro para garantir um aborto decente ou então casar com a moça e ter o filho. A relação é verdadeira e aparentemente sincera. Como pano de fundo há a Guerra Civil Espanhola e a certeza de que a Segunda Guerra Mundial está prestes a chegar. O velho Mathieu divide seu tempo com estudantes, sobretudo dois irmãos, filhos de russos, o jovem estudante de filosofia Boris e sua irmã Ivich, prestes a ser reprovada nos exames finais, que – como todas nós – tinha “uma franja que lhe descia até os olhos”. Boris é amante de uma cantora de cabaré, uma quarentona que consome drogas. Jacques, irmão de Mathieu, é um burguês bem-sucedido, portanto desprezível. Fumam muito, bebem muito, a jovem Ivich despeja vodca pela goela e arremata com champanhe. Todos se angustiam muito em seus pequenos apartamentos ou quartos de hotel, mas também se divertem bastante nos cafés da Rive Gauche, na rua Monsieur Le Prince, no boulevard Saint-Michel.

O belo Daniel vive de expedientes e o amigo Brunet só encontrou sentido na vida depois da decisão de entrar para o Partido Comunista. Por toda parte tocam jazz, muito jazz.

Os personagens, com seus discursos absolutamente jovens, vistos de dentro, falando por suas vozes entre acertos e erros, não podiam deixar de ser uma grande atração, como acontecerá depois com os autores da beat generation ou quando J. D. Salinger aqui chegou. Mas, no romance de Sartre, é o fato de aquele velho e sedutor intelectual ser tão arrasadoramente transpassado por dúvidas e, ao mesmo tempo, relutar tão fortemente em ser absorvido pelo cotidiano mediocrizante que me fascinou. Diz, em determinado momento, Mathieu:

Será isso a liberdade? […] Eu, tudo que faço, faço por nada; dir-se-ia que me roubam as conseqüências de meus atos, tudo se passa como se eu pudesse sempre voltar atrás. Não sei o que não daria para cometer um ato irremediável.

O que tem, realmente, o romance para ter sacudido tanto aquela garota, mesmo que estivéssemos ainda na pré-história, quando a pílula anticoncepcional ainda não circulava livremente? O fascinante em A idade da razão é ser um romance sobre a liberdade – Sartre diz sobre o livro: “le sujet c’est la liberté” – a decisão de escolher a própria vida. O arrebatador, naquele momento, era o autor mostrar que a opção pela liberdade não depende da idade, não é impossível nem para os jovens nem para os velhos. Sartre fará dessa convicção a estrutura de seu pensamento filosófico e o fulcro de suas ações políticas.

Com a leitura do romance vinha a idéia de existir um espaço geográfico de liberdade, de tolerância, a possibilidade de a literatura tratar de uma forma muito próxima questões para as quais dificilmente encontrávamos interlocutores. E vinham também discussões que só hoje posso perceber o quanto era importante de serem travadas quando o livro foi publicado na França, em 1945, e quando chegou até nós (meu volume, velhinho, coitado, sobrevivente a mudanças de países e endereços, é da terceira edição, de 1961, pela Difusão Européia do Livro): o discurso feminino como um discurso próprio, afirmativo, capaz de mudar o próprio destino; a questão do respeito à opção sexual de cada um, com a denúncia de formas disfarçadas ou não de discriminação do homossexual; a defesa do amor liberto de conveniências e concessões; a valorização do saber intelectual como fonte de prazer e não forma de ascensão social; a recusa em atribuir as próprias culpas aos outros. Enfim, não é só da liberdade, dos prazeres, da bela cidade francesa e do protagonismo da juventude que o livro trata. A idade da razão é, como a obra e a vida de Sartre, o elogio da democracia e da tolerância e uma discussão impiedosa sobre a função do intelectual.

Nascida numa família de comunistas, com o DNA da política no sangue, fascinou-me o diálogo que Mathieu trava com Brunet, o amigo que, buscando ser solidário e tentando, como todos, ajudar o professor a encontrar um sentido na vida, convida-o a entrar para o Partido. Mathieu partilha os mesmos ideais do militante, chega a dizer que “não se é homem enquanto não se encontra alguma coisa pela qual se está disposto a morrer”, mas recusa dizendo: “Apesar de tudo, não posso tomar partido, não tenho razões suficientes para isso. Revolto-me, como vocês, contra a mesma espécie de indivíduos, contra as mesmas coisas, mas não é o bastante”. E os dois continuam amigos.

A nota do tradutor, o escritor Sergio Milliet, mostra bem o quanto a coloquialidade, a linguagem urbana e jovem adotada por Sartre ainda era incomum. Vale citar a advertência do tradutor:

A tradução de um livro como este, escrito numa linguagem familiar, eivada de locuções populares e de gíria, exigia do tradutor certas liberdades.[…] O tradutor fez o possível para manter-se fiel ao estilo do autor, correndo embora o risco das constantes repetições, coisa com que Sartre não se preocupa em verdade.

Logo após A idade da razão, li os outros dois tomos da trilogia, mas já sem sofrer o impacto do primeiro. Só depois li A náusea, melhor romance e reflexão filosófica mais radical. Se tivesse começado por ele, no entanto, o impacto de Sartre sobre minha vida provavelmente não teria sido tão radical, como também não foi, como experiência de vida, a leitura dos excelentes romances de Camus. Os contos de O muro comoveram-me, talvez um pouco demais. A obra teatral demorou mais a chegar, chegou sobretudo via traduções de Portugal, mas a essa altura já dava para encarar o texto em francês, já que apesar de tudo era preciso freqüentar também as salas de aula do CAP. Tornei-me, pretensiosamente, uma espécie de especialista em Sartre, o que me garantiu imensa respeitabilidade, já que o autor era mesmo mais citado do que lido, na melhor tradição do que se chamou depois de “Geração Paissandu”, aquela galera que ia ao cinema com livro debaixo do braço. Desisti de estudar história ou sociologia, como pensava ao subir as escadas do segundo grau. Resolvi estudar literatura. Nunca, por um só instante, mesmo nos momentos mais difíceis, me arrependi. Também nunca me curei do vírus do jazz.

Ainda cheguei a Paris a tempo de ver Sartre vendendo o jornal La Cause du Peuple nas ruas do Quartier Latin, mesmo em dias muito frios. Demorei a chegar até Simone de Beauvoir, sem dúvida melhor romancista do que o companheiro, talvez por uma espécie de ciúme. Se meu mundo ainda fosse abalável em 1981, quando Beauvoir publicou A cerimônia do adeus, teria sido sacudido, mas já estava, havia algum tempo, na idade da razão.

Não tenho condições de opinar sobre a obra disciplinarmente filosófica de Sartre, apesar de considerar O existencialismo é um humanismo, Questão de método e A imaginação obras fundamentais para o estudo da literatura. Parece-me, também, que O que é a literatura, publicado em 1948, se sustenta e é contribuição importante à questão da autonomia da arte.

Três obras de Sartre, porém, parecem-se decisivas para o questionamento do cânone literário, para a ruptura com os impotentes conceitos de gêneros literários, para a renovação do conceito e dos limites de obra literária. São elas: o prefácio à obra do antilhano Frantz Fanon, Les damnés de la terre, considerado texto fundador dos estudos sobre as novas subjetividades e inaugural dos estudos pós-coloniais; As palavras, simploriamente tido como um relato autobiográfico quando, assim como o Barthes por Barthes, implode o gênero, e o estupendo Saint Genet – ator e mártir, inclassificável obra que lança mão de uma vida para falar da vida.

No final de A cerimônia do adeus, Simone de Beauvoir faz uma observação que me tocou: “As cinzas de Sartre foram levadas ao cemitério de Montparnasse. Todos os dias mãos desconhecidas depositam em seu túmulo buquês de flores frescas”.

Acho que compreendo bem por quê.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado como um capítulo do volume 10 livros que abalaram meu mundo, de vários autores, pela editora Casa da Palavra, lançado neste ano.

Para ir além





Beatriz Resende
Rio de Janeiro, 28/8/2006

 

busca | avançada
75378 visitas/dia
1,7 milhão/mês