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Segunda-feira, 23/10/2006
Artistas não são pirados
Ronaldo Correia de Brito

Entre as balelas inventadas pela modernidade, uma foi estabelecer nexo entre arte e loucura, como se o artista fosse necessariamente um alucinado. O verbo surtar, do jargão psiquiátrico – que significa a perda de controle sobre si mesmo, a entrada num estado paranóide ou delirante com todas as dores próprias da alucinação –, ganhou status e glamour.

Hoje em dia todos surtam. É a moda. Até o Houaiss registrou um significado ameno do verbo surtar, colocando-o no campo das neuroses, dos problemas psicológicos. Ninguém se assuste ao ouvir uma pessoa falando em surtar na fila do banco, no supermercado, na novela das seis horas.

A sociedade apropriou-se da loucura como um bem descartável, banindo o que havia de sagrado e maldito nesse estado alterado de consciência. Empanturrou-se de drogas, de medicamentos, de álcool, de fumo, e também de psicanálise. Na derrapada, confundiu o estado de transe criador com o delírio esquizofrênico, o jejum da ascese com a anorexia nervosa, a náusea existencialista com a bulimia das modelos de passarelas. A fantasia de que todos os artistas são seres fragmentados é própria de uma sociedade com rupturas.

Os poetas buscaram um fluxo permanente de criação a custo de trabalho e sofrimento. Nietzsche não escreveu delirando, Schuman não compunha em surto psicótico, nem Van Gogh pintava seus quadros quando estava alterado.

Os Upanixades, livro sagrado do povo indiano, define o vazio que antecede o ato criador como um instante de comunhão com o ser. O mais alto estado se alcança quando os cinco instrumentos do conhecer permanecem quietos e juntos na mente, e esta não se move. Êxtase, iluminação, revelação ou inspiração, qualquer nome que se queira dar a esse estado, não corresponde à loucura. Ao contrário, é puro conhecimento.

O poeta inglês Wordsworth escreveu que a poesia é emoção relembrada em tranqüilidade. O mesmo pensou Freud quando afirmou que no ato criador há um fluxo de idéias e imagens que jorram do inconsciente, mas que são polidas pelo consciente.

Na era moderna, o artista desprezou a natureza coletiva da criação, assumindo o caráter da nova sociedade: um exacerbado individualismo. Atribuiu a si próprio a única responsabilidade pela sua arte e nomeou-se "criador", epíteto antes usado apenas para designar os deuses. A autoria virou a marca do nosso tempo.

Os pintores zen-budistas não assinavam suas aquarelas porque acreditavam que elas só adquiriam existência ao serem contempladas. Qualquer pessoa que olhasse a aquarela tornava-se o autor, pois a reinventava a partir daquele instante de contemplação, conceito filosófico vago para a nossa mente ocidental monoteísta, que atribui a criação do mundo a um Ser único.

Entre as sociedades tribais, bastava que um membro se desgarrasse dos costumes para ser punido com a expulsão ou a morte. A mitologia de todos os povos está repleta de heróis que padeceram na luta pela individuação. Quando uma sociedade se confronta com um artista, ela tanto pode aliená-lo de sua coletividade, como elegê-lo seu representante. Ao mesmo tempo em que ela cobra do artista que ele rompa com as regras, transgredindo, extrapolando, derrubando muros, pune-o por essas transgressões.

Surge a figura moderna do artista neurótico, perplexo e fragilizado, que não distingue o eterno do descartável, porque também não lhe interessa a distinção. Tudo é consumido numa velocidade estonteante. O novo envelhece em poucas horas, criam-se outros simulacros, as prateleiras são repostas.

O artista se transforma em fabricante de escândalos, em alucinado. Confunde-se arte e produto, poesia e escracho, êxtase e exposição da imagem. E o atributo de loucura serve apenas à ambígua função de justificá-lo e execrá-lo.

Nota do Editor
Ronaldo Correia de Brito é autor de Faca e Livro dos Homens. Assina uma coluna na revista Continente e no Terra Magazine, onde este texto foi originalmente publicado.

Ronaldo Correia de Brito
Recife, 23/10/2006

 

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