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Segunda-feira, 29/7/2002
Sérgio Buarque de Holanda: o homem cordial
Alberto Beuttenmüller

Sérgio Buarque de Holanda faria 100 anos em 11 de julho de 2002. Lembro-me de nossos papos na rua Buri, 35. Não posso esquecer as profundas especulações de Sérgio. A casa vai tornar-se um centro de MPB. Será bom? Será ruim? O tempo dirá. Recordar é andar sobre ruínas. É o que sinto neste momento de saudade de Sérgio. Invadem-me versos de Fernando Pessoa de "Aniversário":

(...) "O que sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio
" (...)

Andei lendo aqui e ali as homenagens ao Sérgio Buarque e nenhuma delas me acalentou. Demonstrações de vaidade, cada qual a querer mostrar mais sapiência que a outra. Sérgio Buarque era pesquisador sagaz, lúcido e humilde, daí sua grandeza. De tudo que li, o que mais me agradou foi uma descoberta de texto inédito de Sérgio, hoje no acervo da Praça Henfil, 50, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Unicamp, Biblioteca Central.

A família de Sérgio doou à Unicamp todos os documentos pessoais do historiador, depois que a universidade campineira comprou, em 1983, sua biblioteca de 8.513 volumes, 227 títulos de periódicos e 600 obras raras dos séculos 16 ao 20. Esse inédito tesouro, levado em meio a toda essa documentação, é uma dissertação de mestrado: Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos, defendida em 30/07/1958 na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.

Recordar é ruminar entre ruínas. O que me lembro de Sérgio era do homem cordial, que me recebia à porta de sua casa da rua Buri e me levava ao seu esconderijo intelectual, sala cheia de livros, mesa de carvalho, estantes ao redor, e, esconsa atrás da poltrona, a cachaça mineira ou o whisky. A poltrona vestia-o, como um casaco nos dias frios; cabelos em desalinho, pelo constante passar e repassar da mão à cabeça, como se o gesto fosse melhorar ainda mais sua memória já prodigiosa. Falávamos de tudo um pouco.

De repente, dizia os versos de Hölderlin, com seu sotaque prussiano, que aprendera na Alemanha em 1929-30. Nesta época entrevistou Thomas Mann e viu a ascensão do III Reich:

Im dunkeln Efeu sass ich, an der Pforte
(Na hera escura estava eu sentado, às portas)

Des Waldes, eben, da der goldene Mittag
(da floresta, mesmo quando o meio-dia de ouro,)

E ficávamos a discutir qual era o nome do poema, embora esse fosse fácil, era o "Der Rhein" ("O Reno").

A literatura era sua paixão; a história, profissão. Às vezes, a nossa prosa se interrompia pela chegada de dona Maria Amélia, que trazia guloseimas com café. Os copos eram esconsos, notadamente o dele, já que não podia fumar nem beber, mas deles abusava. Ele ria de toda aquela dissimulação. Era dona Maria Amélia abandonar a sala, e a garrafa retornava à mesa e seu Gauloise, dos mais fortes fumos, sem filtro, voltava a espiralar fumaça pela sala.

Nessa revisitação ao universo de Sérgio, lembro-me dos papos sobre sua obra mais famosa: Raízes do Brasil (1936), que teve prefácio de Gilberto freire, na primeira edição, logo substituído por outro de Antonio Cândido. O motivo dessa desavença entre Sérgio e Gilberto é uma incógnita. Sérgio não gostava de Gilberto, nome que entrara para o índex do historiador e que passou a ser proibido em qualquer conversa com Sérgio. Ainda me lembro de ter manuseado a primeira edição de Raízes e de expor as questões que os estudiosos viviam a discutir sobre o "homem cordial". Sérgio ficava possesso. Era fácil perceber. Se comparada a Casa Grande & Senzala, a obra de Sérgio fora menos reconhecida, menos reeditada e menos lida. E quiseram fazer piada com a tese do brasileiro como "homem cordial", entendida a "cordialidade" como concórdia, bondade, subserviência, quando o que Sérgio queria dizer era passional, aversão a toda convenção ou formalismo social, e tanto podia ser positiva ou agressiva. O trecho de Raízes é claro: "A inimizade bem pode ser tão cordial quanto à amizade, visto que uma e outra nascem do coração, procedem da esfera do íntimo, do familiar, do privado".

O importante é que a obra de Sérgio Buarque vem crescendo com o passar dos anos e cada vez mais lida, discutida e reeditada. Essas lembranças me vêm à mente porque naquele tempo eu trabalhava no Jornal do Brasil e fazia entrevistas com intelectuais para o "Caderno B". Como tinha liberdade de pautar tais entrevistas, colocava sempre uma com o Sérgio só para matar as saudades. Ele começava a falar como se o tempo não se houvera interrompido, desde o nosso último encontro. E se lembrava do último assunto tratado. Ele anotava tudo e citava de memória os pontos principais.

Não é fácil andar sobre as ruínas que a memória marca para sempre. Duro é cumprir essa arqueologia da saudade. Sérgio Buarque de Holanda crescerá com o tempo. E as ruínas da memória serão cada vez mais escavadas, pedra por pedra, nessa nossa história do Brasil.

Nota do Editor
Texto inédito, especialmente redigido pelo autor, para o Digestivo Cultural. Alberto Beuttenmüller é poeta, jornalista e crítico de arte (membro da AICA).

Alberto Beuttenmüller
São Paulo, 29/7/2002

 

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