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Segunda-feira, 27/11/2006
O making-off da Navegação
Paloma Amado

O ano era 1991. Creio que a proximidade dos oitenta anos fez papai – o escritor Jorge Amado – decidir-se por, finalmente, colocar no papel algumas lembranças e alguns pensamentos, frutos de uma vida intensamente vivida. A idéia o tentava há muito tempo, porém um pacto feito com Ilya Eremburg e Pablo Neruda, de nunca publicarem livro de memórias, o retinha. Depois da morte de Ilya, sua filha Irina publicou não um, mas uma série de livros de memórias, que o pai havia deixado prontos. O de Neruda, também póstumo, Confesso que vivi, saiu em plena ditadura Pinochet. Por que esperar mais? Já tinha o título para o pequeno conjunto de lembranças que iria oferecer ao público: Navegação de Cabotagem.

Estavam em grande temporada francesa, para grande alegria minha, que vivia em Paris. O apartamento do Quai dês Celestins era o local ideal para escrever, aconchegante, dona Zélia cozinhando risotos e brodos italianos deliciosos, o tempo friozinho, não precisou muito para seu Jorge botar mãos à obra. Aliás, o mesmo clima propício à escrita contagiou dona Zélia, que também foi para a máquina – no seu caso um computador –, escrever Chão de meninos.

Escreverem ao mesmo tempo não era comum, e na verdade criou um problema, já que mamãe sempre foi a datilógrafa dos originais de papai. Eu estava desempregada, me candidatei e ganhei a vaga! Que privilégio.

Nunca vi papai tão entusiasmado, os textos fluíam com uma facilidade e uma rapidez impressionantes. Risos, lágrimas, foram grandes as emoções que sentimos juntos ao reler, corrigir, comentar cada episódio, cada luta, cada amor. Um dia chamei a atenção dele para o fato de que o "pequeno" livro já tinha mais de cem notas (era assim que ele se referia aos textos). Perguntei se a ordem de entrada em cena era a mesma da escrita e ele disse que não. Era preciso organizar o trabalho, já estava grande demais. Foi então que eu e Pedro (Pedro Costa, então meu marido) criamos uma espécie de quebra-cabeças: fiz, no computador, fichas onde se liam o título da nota e os dados principais: data, personagens, local, se político, se alegre ou triste..., identificadas por cores que facilitavam a ordenação.

A grande sala do apartamento era forrada de tecido levemente acolchoado, o que nos permitiu transformar as paredes em páginas de livro. Nelas papai prendeu com tachinhas as fichas, que trocava de ordem com grande freqüência, à medida que o livro ia sendo escrito. As pessoas paravam para ler, comentavam: "Você fala de fulano em três notas seguidas..." Ele concordava ou não. Passou a ser o jogo preferido da família. Nos divertíamos muito, ele mais que todos.

A editora dera um prazo para a entrega dos originais, pois estava prevista a publicação dentro das comemorações de oitenta anos. O pequeno livro já ia para mais de 500 páginas e parecia longe do fim. Pedro fazia a diagramação, que deveria ir para o Brasil em disquetes, para entrar direto em impressão, mas cada nota que mudava de lugar exigia mudança na diagramação. Estava ficando difícil.

Para atender aos prazos, papai resolveu marcar uma data para acabar o livro. Como não queria cair em tentação, comprou um cruzeiro de navio pela Grécia e Turquia, convidou Misette para acompanhá-los e partiram. Eu e Pedro ficamos em Paris terminando a parte gráfica.

Logo na chegada a Atenas, onde pegariam o navio, papai enviou um novo texto. Foi assim durante toda a viagem: escrito à mão, era passado a limpo, também a mão por mamãe, dona de uma bonita letra, e enviado por fax. Como vivíamos os primórdios dessa invenção genial, um dia recebi chamado da France Telecom perguntando se eu tinha consciência do custo daquelas ligações (os telefonemas – a cobrar – dados do navio eram caríssimos), e naquele dia haviam chegado 11 metros de fax mandados do mar Egeu!

O problema não era tanto o dinheiro gasto, mas os apelos da Record para que mandássemos o livro, que nunca ficava pronto. Eles tinham toda a razão. Papai começou a se desculpar: "Este é o último, eu garanto". Depois vinha mais um. "Este é o final". E ainda. "Este é o derradeiro". Quando não encontrou mais sinônimos para a palavra último, e já chegando ao porto de Veneza, final do passeio, escreveu assim: "Desta vez é definitivo, este é o ponto final. Juro pela alma de sua mãe." Reagi imediatamente: "Jure pela alma da sua, que já morreu, deixe a da minha em paz." Fiz bem, pois de Veneza ainda chegou um, o último final derradeiro!

O livro saiu a tempo, com suas mais de 600 páginas. Maravilhosas páginas de uma vida cheia de amor, experiências e generosidade, que eu recomendo a todos.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Publicado originalmente como orelha da nova edição de Navegação de Cabotagem (abaixo).

Para ir além





Paloma Amado
São Paulo, 27/11/2006

 

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