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Segunda-feira, 4/12/2006
O sebo ideal
Mayrant Gallo

Em meio a pessoas que gostam de livros, que não podem viver sem eles e que, não raro, substituem a realidade visível por realidades imaginárias arrancadas da ficção, há sempre aquela idéia do que seria uma livraria ideal. Ou melhor: o sebo ideal. Recentemente, entre amigos, ouvi as mais disparatadas conjecturas. Uma, porém, me impressionou e, não obstante sua origem pessoal, pelo menos no início, percebi que constituía uma verdade quase coletiva, dos leitores, quero dizer. Foi assim que tudo começou, com uma pergunta que não sei mais quem fez:

– Qual seria o sebo ideal?

– Aquele que tivesse todos os livros...

Depois de uma breve pausa, em que refletimos sobre o peso de tal afirmação, alguém assegurou que seria algo impossível. Sem dúvida. Um estabelecimento que contivesse todos os livros só poderia ser um local mágico... E o livreiro também. E dentre todas as pessoas do mundo, neste e em remotos tempos, só um homem poderia, a contento, ocupar esse cargo... Deixei no ar a sugestão, que alguém, de pronto, assimilou:

– Borges...

– Claro! Borges – todos disseram, unânimes.

Portanto, já tínhamos o proprietário do Sebo Ideal, o culto e ávido Borges, capaz de, não havendo o livro que o cliente procurasse, encomendá-lo a si mesmo ou ao seu companheiro de incursões fantásticas, Adolfo Bioy Casares, assim:

– Adolfo, precisamos de um relato breve sobre um homem que, ao voltar para o seio de parentes e amigos, reconhece a todos, mas que, de súbito, ao se ver no espelho, percebe-se outro, outro mesmo, a ponto de não admitir que o reconheçam como a pessoa que ele era tempos atrás. Depois de um período de natural angústia perante a indiferença de todos, que o tratam naturalmente, ele começa a crer que ou está louco ou estão loucas as pessoas à sua volta. Na verdade, nem uma coisa nem outra. Ele apenas passou a outra vida, próxima e insondável, sem perder a consciência da anterior. Quando compreende isso, decifra o mistério do universo, que se alimenta de memórias perdidas, infinitamente renovadas. E compreende também que não ter perdido a memória agora só pode constituir uma dádiva de Deus, que lhe foi condescendente e caro. O fim do homem, para ocultar do mundo seu segredo, numa evidente lisonja divina, é fingir-se de louco e se recolher a um asilo, onde as pessoas, quando o vêem, mesmo as loucas, dizem:

– Esse acha que compreendeu o método de Deus...

– E quais seriam os assistentes de Borges, além de Bioy Casares? – alguém perguntou, quebrando o silêncio avassalador.

– Claro! – outro se entusiasmou. – Precisamos definir os balconistas, o caixa, o contador, o entregador e também os catalogadores, estes eternamente vigiados pelo olhar perscrutador de Borges...

Então outro disse que os melhores balconistas seriam Tchekov e Kosztolányi, por causa de sua lendária simpatia pelo gênero humano, sua memorável piedade, sem a qual não teriam escrito nada, nem um conto sequer. Se às vezes soam melancólicos, é porque a compreensão a que chegaram da condição humana se transfere para suas almas e os prostra no vazio...

Todos os presentes concordaram que eram, de fato, os balconistas ideais. Passamos então ao cargo seguinte. No caixa, entregue aos seus pensamentos fúteis, mais preocupada consigo mesma do que com qualquer abstração humana, alheia aos volumes que passavam de mão em mão, imersa na soturnidade do local, estaria...

– Virgínia Woolf?

– Sim, perfeito! – alguém gritou.

O contador só seria um, e não houve dúvidas quanto a isso. Quando lembrado tal cargo, lembrou-se também que bem poucos pesaram tão bem débitos e créditos, dívidas e compromissos, somas a receber com montantes a saldar; bem poucos foram tão exatos, tão matematicamente perfeitos com uma língua tão esquiva, tão difusa, tão genuinamente poética.

– Machado de Assis!

– Sim! – explodiram os demais, num coro quase religioso.

No momento de estabelecer o entregador, alguém sugeriu Hemingway. O candidato foi bem aceito, embora se lembrasse que Borges, o proprietário, o detestasse. Mas em geral é o que ocorre, o proprietário sempre implica com o jovem entregador, porque ele se demora na rua, se aventura por outros horizontes, se põe a cavar momentos... Nesse aspecto, Hemingway era o entregador ideal.

Por fim os catalogadores, que deveriam ser dois sujeitos metódicos, precisos, de jeitão protocolar e hábitos imutáveis. Por algum tempo, em que muito café e muita cerveja foram consumidos, nenhum nome foi lembrado. Até que Victor Vhil, que se mantivera até então em silêncio, disse:

– Flaubert...

Como não se pensou nisso antes? Era óbvio que Flaubert era o catalogador ideal, e se não se achasse mais ninguém, nenhum assistente com os requisitos exigidos, ele daria conta do recado. No entanto, havia alguém que poderia assisti-lo com prazer, apesar das diferenças...

– Quem?

– Ora, Proust!

Todos riram. Só faltavam os leitores ideais. Leitores...? E há leitores?

– Todos os outros escritores... – alguém disse, ao mesmo tempo balbuciante e sombrio.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na edição de 16 de novembro de 2003 do Correio da Bahia.

Mayrant Gallo
Salvador, 4/12/2006

 

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