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Segunda-feira, 11/12/2006
No Museu da Língua falta o livro
Affonso Romano de Sant'Anna

Esse espetacular Museu da Língua Portuguesa, esse magnífico show de visualidade lá na Estação da Luz, em São Paulo, provoca deslumbramentos e várias ponderações. Como disse, é espetacular. E essa palavra é mais do que apropriada, sobretudo depois que, há uns 40 anos, a sociologia cunhou a expressão “cultura do espetáculo”. O projeto é fazer um museu vivo de nossa língua, o que pressupõe movimentação, interação e modernidade. “Ao invés de paredes, vozes. No lugar de obras, espaços interativos”. E o resultado é bem um glamoroso produto semiótico da sociedade siderada em imagens.

Mas senti falta do livro.

Você entra no segundo andar e, numa atmosfera semi-escura, vê alongar-se uma extensa galeria ou parede na qual são projetadas sucessivamente imagens de nossa cultura. Entre essas primeiras imagens, como num clipe, sobressaem famosos músicos brasileiros cantando, como a demonstrar que eles (e não necessariamente os escritores) são os grandes atores da língua.

Centenas de crianças vindas de inúmeros colégios passam, ruidosamente, procurando o que acionar e ver nesse parque de diversões formado por imagens lingüísticas. Assentam-se nos computadores e, ludicamente, procuram e descobrem a origem de palavras africanas, inglesas, francesas, enfim, de muitas línguas de imigrantes que vieram para o Brasil. Noutros espaços, há um balé de sufixos e prefixos e as palavras se aglutinam vivamente.

Tudo é de muito bom gosto. Vitrinas com peças de diferentes culturas que entraram na nossa formação. Do lado oposto, há uma exposição mais convencional com mapas, textos e posters que narram a evolução das línguas e da língua portuguesa. E ao longo dessas vitrinas, uma faixa estreitinha (pouco visível) enfileira os nomes de escritores selecionados como emblemáticos no trato com nossa língua.

No andar superior exibem um filme sobre a origem da língua. Na Praça da Língua você pode ouvir textos literários ditos por atores. Já no primeiro andar, uma exposição sobre Guimarães Rosa e sua obra dá seqüência a essa sensação de jogo, brinquedo e descoberta. Crianças e adultos podem puxar cordões e fazer baixar do teto reproduções, no tamanho de um poster, dos rascunhos à máquina de Grande Sertão: Veredas. Podem constatar como o romancista cortava e emendava seus textos e tomar nas mãos essas páginas surpreendentes. Podem também ver na parede um gigantesco mapa do sertão roseano e seguir o trajeto de seus personagens, ou colocar o olho em vários binóculos para ver as muitas definições líricas e metafísicas de “sertão”. Também textos são projetados sobre superfícies líquidas em tonéis de água. De todo lado, o visitante recebe fragmentos que estimulam, primeiramente, o olhar. Há ainda circuitos temáticos para serem feitos seguindo pistas no chão, enfim, um parque de diversões onde a garotada se encanta.

Enfim, como se diz, é uma exposição “pró ativa”.

Mas senti falta de livro.

Não se trata de querer que o livro seja ali adorado num distante altar. Mas do livro enquanto objeto catalizador da língua. Livro como suporte essencial da letra. Livro como fixador, como nos perfumes. Ali mesmo tive a experiência sobre como a leitura é mais eficiente que a fragmentária visão. As imagens lançadas aqui e ali seduzem, mas se esvaem rápido. Quando saí, o que levava comigo era sobretudo o que tinha lido ao longo da parede ou nos textos. É que a leitura não é algo “apenas” ou “sobretudo” espacial. Leitura é um ato temporal. É o exercício da subjetividade. Ler um texto, como quem toma um bom vinho, é decantar seus vários significados. Ler exige introspecção, é sair do espaço externo para o tempo interior. E a prova do efeito transformador do livro e da leitura é o fato de que a introspecção e a leitura estão na raiz da ciência, da arte e da religião. Ou seja, de toda cultura.

Enfim, senti falta do livro.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal Estado de Minas.

Affonso Romano de Sant'Anna
Rio de Janeiro, 11/12/2006

 

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