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Segunda-feira, 25/12/2006
Parei de fumar
Milton Hatoum


I

Sete vezes tentei parar de fumar e sete vezes fracassei. Mas agora, na oitava – e talvez última – tentativa, derrotei o vício.

Nunca fumei cigarros "industrializados". Comprava tabaco holandês e enrolava cigarro com papel de arroz ou palha de milho, como fazia nosso avô na roça, na aldeia ou na cidade do interior. Ou como ainda fazem muitos europeus, que enrolam seus cigarros com os dedos ou com a ajuda de uma maquininha.

Um fumante é um drogado dentro da lei, uma vítima da primeira tragada. Aniquilar esse vício é uma decisão difícil. A dependência, que é física, causa também transtornos no nosso comportamento, na nossa vida mental. Isso porque o tabaco é uma droga poderosa capaz de transformar um fumante num ser patético.

Lembro de um amigo que começou a tremer e a gaguejar enquanto procurava um maço de cigarros. Foi no inverno de 1982, no outro hemisfério. Tarde da noite meu amigo saiu na madrugada gelada atrás de cigarro e voltou com uma garrafa de vodca para substituir o tabaco que não encontrara. Não tremia mais, nem gaguejava. A bebida mitigara a ânsia pela nicotina? Desconfiei. E então ele abriu um pacote cheio de tocos de cigarro que havia catado nas calçadas e ruas desertas.

Um outro amigo conseguiu parar de fumar, mas adquiriu o hábito pantagruélico de devorar seis ovos mexidos com ameixas secas no café da manhã.

Por que as ameixas secas, perguntei.
Pergunte à nicotina, ele respondeu.


II

Penso que ninguém comete suicídio por falta de tabaco, mas é provável que um cigarro tenha adiado vários suicídios. Ou, quem sabe, tenha transformado um ato de loucura num arrependimento redentor.

Um prisioneiro, um exilado, um jogador num dia de azar, um apaixonado solitário, um enlutado e um deprimido, todas essas pessoas têm motivos de sobra para dar uma tragada. Um vigia ou guarda-noturno certamente recorre ao vício maldito para lutar na escuridão contra o tédio da noite longa, que teima em não dar passagem para o amanhecer. E muitos miseráveis, exasperados de tanto esmolar em vão, acabam pedindo um cigarro de algum fumante generoso. O transeunte apressado, que é incapaz de tirar uma moeda do bolso, interrompe sua caminhada e oferece um cigarro ao pobre-diabo. É um momento em que esses dois seres são solidários. Nada como um vício insidioso para aproximar o pequeno burguês do maltrapilho.

O tabaco amolece nosso coração, nos torna generosos na hora do desespero. Você, leitor felizardo que nunca fumou, talvez não entenda essa insólita filantropia.

Ainda me lembro do último cigarro. Parece que foi ontem. E, de fato, foi ontem. Mas jurei que ia escrever esta crônica sem dar uma única tragada. É verdade que tremi um pouco, devorei meio quilo de castanha e caminhei na noite chuvosa como um desesperado.

Depois do adeus à nicotina, o único vício que me atormenta e dá prazer é a literatura.


Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Terra Magazine em setembro de 2006.

Milton Hatoum
São Paulo, 25/12/2006

 

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