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Segunda-feira, 8/4/2002
Um homem sem profissão nem esperança
Luís Antônio Giron

A busca de textos escondidos é uma dengue literária bem brasílica. Mesmo assim, a obra inédita do escritor paulistano Oswald de Andrade constituiu seara pouco escrutinada pelos caça-fantasmas do verbo. O motivo talvez seja este: a produção final do agitador do Modernismo não reserva aos leitores e aos críticos o traço explosivo de seus textos de juventude e, de certo modo, é destituída daquilo que os teóricos denominam “literariedade”, ou, em palavras mais simples, valor de troca literário.

A maior parte do que Oswald escreveu entre a metade dos anos 40 até sua morte, em 22 de outubro de 1954, aos 64 anos, resume-se a fragmentos de memórias e romances, lamentações sobre a falta de inspiração, cartas e Telefonemas – minicrônicas que publicou no carioca Correio da Manhã a partir de 1944, como correspondente de São Paulo; a propósito, o derradeiro texto da coluna saiu no dia seguinte de sua morte.

Nos estertores da criatividade do escritor, há passagens impublicadas impublicáveis, se o critério da excelência poética for levado ao pé da letra. Existem, por outro lado, textos reveladores da personalidade desse escritor ainda não contemplado com uma biografia e nem com a admiração por parte considerável da crítica.

Muito do artista está para ser trazido à luz. A maior parte de seus manuscritos foi doada pela família ao Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE), da Universidade de Campinas e forma o Fundo Oswald de Andrade, aberto ao público.

Com base no arquivo e em documentos ainda em posse da família do escritor, o crítico literário Jorge Schwartz organizou o volume Obra Incompleta de Oswald de Andrade, a ser publicado pela editora Scipione até o fim deste ano. O volume integra a Coleção Archivo - Série Unesco. “É uma obra 1.800 páginas e estamos na última revisão”, revela Schwartz. De acordo com ele, o volume se restringe à produção dos anos 20, quando Oswald experimentou seu estágio mais inventivo, com os romances “de ruptura” – como define Schwartz – Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (publicado em 1933, mas desenvolvido na década anterior). O volume de Schwartz compara dois manuscritos de Memórias Sentimentais e três de Serafim descobertos durante a pesquisa. Em torno dessas narrativas, Oswald produziu fragmentos como “História de José Rabicho Nascido em 5 de Janeiro” e uma infinidade de poemas e epigramas. Um festival de cacos ou, como prefere o organizador, “uma verdadeira usina literária”. A edição se completa com um “Caderno de imagens”, com fotografias e desenhos inéditos do autor. Segundo Schwartz, ficam fora do volume a correspondência, o teatro, os romances posteriores e os textos menores, como jornalístico e de memória.

A intenção da Obra Incompleta é delimitar o momento em que o dragão antropofágico alterou a história da literatura brasileira por meio da narrativa experimental de inspiração cubista. Separa o Oswald 1, modernista, do Oswald 2, socialista utópico, teórico da descolonização cultural e romancista de tese. É excluída, assim, a imagem do intelectual arrasado dos anos finais. O Oswald 1 é o que fica valendo para a história da literatura.

A presença de Oswald é mais como ídolo da contracultura de 1968 do que um escritor efetivamente respeitado. As lições transgressivas do Oswald 1 inseminaram uma geração de artistas que gozou o ápice criativo na segunda metade da década de 60. O revisionismo da obra do autor se deu pela poesia e por força dos poetas que passaram a considerá-lo um santo padroeiro autor de poemas-piadas e de epigramas cômicos. O fenômeno pode ser definido como euforia da influência ad hoc, que atravessa gerações e se alimenta mais das auto-exaltações do que de assimilações efetivas.

No início, existia o elogio... de Oswald a Gullar, que o velho escritor considerava a esperança da nova poesia nativa. No esquema do curso de História da Literatura Brasileira que planejava ministrar na Universidade de Upsala, Suécia, nos seus delírios de resgate intelectual pela academia, Oswald incluiu um capítulo especial a Ferreira Gullar. Ele chegou a comentar o fato ao jovem poeta, que ficou encantado com a sedução que provocou no velho antropófago.

A veracidade da declaração pode ser confirmada na coleção da Unicamp, onde consta, sob o número 1372, um caderno como “Roteiro de Upsala”. As anotações datam de 20 de junho de 1954 e dividem a história da literatura brasileira em quarenta tópicos, indo da “Idade da Pedra” do Brasil ao romance existencialista de Gustavo Corção e à poesia laboratorial de Ferreira Gullar (colocado no mesmo nível de Drummond de Andrade no item 26). No tópico 23, ele trataria do programa de “recuperação nativista” ensaiado pela Semana de 22. A conversão ao marxismo pela maior parte dos modernistas, inclusive ele, em 1931, é definida como “divisor de águas” da literatura brasileira do século XX. E devota a Jorge Amado e à questão social aquele que seria o capítulo 35. O curso, porém, não chegou a se concretizar.

Depois da morte de Oswald, Gullar se esforçou em propagar a memória do admirador. Conta que apresentou, nos idos de 1955, os poemas do livro Pau Brasil (1925), de Oswald, para Augusto. Este levou o livrinho para os outros concretos. E foi Haroldo a dar a formulação teórica para a poética de Oswald como tardo-construtivista inspirador da experimentação com a linguagem em língua portuguesa em introduções a livros e antologias de Oswald que publicou no início dos anos 60. Como resultado, o trocadilhismo oswaldiano até hoje oferece o pretexto para músicos discípulos dos concretos e dos tropicalistas fazer poesia pelo recurso da enumeração repetitiva de palavras. Assim, Oswald se tornou precursor do teatro de vanguarda, do concretismo, do tropicalismo e da música pop. No fim dos anos 80, tal “poética” foi anexada à cultura oficial do Estado de São Paulo. De certo modo, a Obra Incompleta reforça a imagem de vitalidade agressiva do autor tão admirada pela posteridade contracultural.

Figura bem diversa vem à tona nos textos não publicados de Campinas que não fazem parte dos planos imediatos de Schwartz. No CEDAE, encontram-se am um caderno azul-marinho de capa dura, com 300 páginas (documento número 1364); contém o primeiro capítulo de Marco Zero III - Beco do Escarro e trechos confessionais, e um caderno menor, escolar, de marca “Guarany” (1380) com capítulo do segundo volume de Um Homem Sem Profissão (memórias e confissão), intitulado “O Salão e a Selva”. A documentação retrata as hesitações e a revolta de um escritor que havia perdido a reputação e lutava para se manter intelectualmente vivo, às voltas com leituras de autores existencialistas, projetando palestras e cursos, descobrindo autores jovens e se dedicando à elaboração de uma ética antropofágica. É o Oswald patético que os idólatras precisam esquecer.

“Um dia fui visitá-lo no apartamento dele no Bexiga e fiquei estarrecido com o que vi”, conta Mario da Silva Brito, amigo íntimo de Oswald e historiador da Semana de 22. “Sentado à poltrona, ele tinha manchas no rosto e parecia sofrer de uma doença rara. Disse-me: ‘Vou morrer. Mas não estou preocupado comigo. Me preocupo é com esses aí’. E fez um movimento de cabeça na direção de seus dois filhos, um menino e uma menina, Antonieta Marília e Paulo Marcos.”

Brito afirma que Oswald sempre foi um crianção. “Confessou-se um eterno edipiano. Suas aventuras amorosas serviram para perseguir a mãe nas mulheres com quem se envolvia. Finalmente apareceu, em 1942, Maria Antonieta d´Alkmin, a última com que se casou. Encontrou nela a mãe que sempre buscou”.

Atesta a afirmação uma carta inédita pesquisada por Schwartz e conservada por Antonieta Marília. Dirigida aos dois filhos pequenos, é datada de 7 de julho de 1954, três meses antes de morrer, e faz a confissão da rendição amorosa: “Uma noite, no hall de um hotel popular de Sevilha encontrei Don Juan – o rosto marcado e severo, a presença imponente e simples. Fiquei encadeado àquela figura anônima de espanhol com quem sentia secretos compromissos. Quem era eu senão Don Juan – um experimentador de amores e de aventuras? A mãe de vocês me fixou no solo atávico, realizou o milagre de me autenticar, ressuscitou em mim o que era essencial e se esquivava. Enquanto eu doente permaneço sentado ao meu leito, ela organiza a biblioteca – santa ideal de minha mocidade. Ela teima em organizar um ambiente de trabalho intelectual para o caído que eu sou. Só ela é capaz de acreditar na minha ressurreição”.

A “debacle” artística está fixada nos citados cadernos, que Maria Antonieta organizou e anotou cuidadosamente.

Beco do Escarro ocupa dez folhas do caderno e completaria a trilogia de romances sociais sobre a industrialização de São Paulo iniciada em 1943 com Marco Zero: A Revolução Melancólica, seguida dois anos depois por Marco Zero: Chão. O capitulo, datado de 1946, intitula-se “Muralha Queimada” e narra as agruras da pobretona Miguelona Serafim no Fórum de São Paulo. Ela tenta processar um major que lhe roubou as terras, mas perde o julgamento e volta à vila onde mora. É o típico episódio de denúncia da luta de classes que o amigo de Oswald, Jorge Amado, fazia na época. O capítulo é escrito a lápis. Das páginas seguintes consta um plano de Beco do Escarro, com sete capítulos que narrariam episódios entre 1935 e 1945. O escritor lançou ao papel algumas tiradas para inclusão posterior, como a frase do agiota: “Minha filha está gordinha, mas não sabe quanto custa aquela gordurinha dela”.

A desorganização de Oswald é grande nos manuscritos. Juntava planos, pensamentos e ficção num mesmo espaço. Nas páginas 296 a 298 do mesmo caderno, figura uma passagem confessional, com data de 29 de junho de 1948.

Nela, Oswald confessa a si mesmo que sua “vida caçadora” representa uma derrota. “Por que negar?”, escreve, sempre a lápis. “Por que dissimular a mim mesmo? Ficaria uma ferida. Aquele sujo pretexto de dever cumprido não possa de um recurso sanitário da velha hipocrisia que me caracteriza. O mal não é meu só. É de todo o século.” Reclama que não atingiu o auge almejado: “Quando não cumpriu o seu dever antropofágico, que é o de estraçalhar a prosa à vista, perante a adesão gulosa dos outros, compõe uma máscara generosa que o justifique. Por que, no fundo, essa timidez de colegial num velho sexagenário que já perdeu todas as ilusões? Menos a da barata noturna que procura um naco de chulé num chinelo velho de um quarto. E que foge desatinada ante o menor barulho.”

No início de 1954, ele publicava o primeiro volume de sua memórias, Um Homem sem Profissão: Sob as Ordens de Mamãe pela Livraria Martins Editora. O livro conta seus primeiros passos até o início da carreira jornalística, nos anos 10. Não teve repercussão alguma, o que desgostou o escritor. Ele ainda tentaria escrever o segundo volume, O Salão e a Selva. Nele, narraria como se deu a preparação da Semana de Arte Moderna de 22. Mas não teve tempo para realizar o projeto. Restou apenas o capítulo aqui publicado pela primeira vez. O trecho de três páginas não traz data, mas bilhetes escritos para Maria Antonieta no início do caderno dão conta de que foi redigido em 1942.

Não é difícil prever os desdobramentos do capítulo. Narra ali suas impressões nada favoráveis da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde se formou em 1919. Imagina o que os escritores românticos sofreram quando estudaram ali no início do século XIX, buscando diversão com prostitutas numa ilha do rio Tamanduateí (hoje soterrado por avenidas). A “bucha” era o nome de uma das sociedades secretas que vicejaram na São Francisco. E lança suas farpas contra a classe jurídica. A seqüência de episódios conduziria o leitor à conspiração modernista, às noites de tumulto em fevereiro de 22, à fama do movimento e à conversão ao marxismo. Mesmo desdentado e desiludido, o antropófago ainda se expressava como um romântico. Oswald 2 se enxergava como Oswald 1. Um ou outro, ele passou à história como o anti-herói que triunfou na depressão.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal Valor Econômico, a 22 de março de 2002. Acompanha fragmento inédito de Oswald de Andrade intitulado “O Salão e a Selva”.

Luís Antônio Giron
São Paulo, 8/4/2002

 

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