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Segunda-feira, 16/4/2007
Na Web 2.0, WeAllTube
Sérgio Augusto


2006 ia ser o ano da hi-def, da alta definição. Não foi. Formatos incompatíveis emperram sua prosperidade – como nos tempos do VHS vs. Betamax. As vendas dos televisores de alta definição (HDTV) até caíram em 2006: só nos EUA, 16%.

2006 ia ser e não foi o ano da mídia móvel, a consolidação universal dos blackberrys e celulares onipotentes. Onipresentes, sim; onipotentes, ainda não. Quando empatarem em qualidade e abrangência com os computadores, aí sim. Propaganda em celulares? Se isso é novidade que justifique libações, proponho um brinde à volta do El Niño. Ou, para voltarmos aonde estávamos, à chegada dos spams literários (lixo “intelectualizado” com anúncio embutido: um verso de Shakespeare preludiando a oferta de um bagulho qualquer) e à Techno Fashion do charlatão Hussein Chalayan e seus vestidos mecanizados, um dos espantos da última Paris Fashion Week .

2006 foi o ano da Web 2.0. Da apropriação da World Wide Web (a grande infovia), por mim, por você, por todos nós. A revista Time acertou na pinta. Sua “Person of the Year”, sua personalidade de 2006, não foi um indivíduo excepcional, mas todos os indivíduos excepcionalizados pela Web 2.0, condensados num “você” coletivo. Na capa, um desktop, com um baita “You” na tela. Embaixo, a razão da escolha: “Sim, você. Você é quem controla a era da informática. Bem-vindo ao seu mundo”.

Inventada há 15 anos por Tim Berners-Lee, a Web 1.0 seria, em princípio, um maná eletrônico para que cientistas compartilhassem melhor e com mais agilidade suas pesquisas. Deu no que deu: Hotmail, Yahoo!, Google, MP3, iTunes. Mas até pouco tempo atrás, a coletivização da internet, o “maoísmo digital”, para usar a expressão de Jaron Lanier, limitava-se à troca de e-mails e endereços de portais, sites e páginas de especial interesse, downloads de música e ações solidárias contra bugs, vírus, spams e pragas que tais. Aí surgiram os blogs e a Wikipedia (a enciclopédia-da-mãe-joana), expandiu-se a banda larga (hoje, 271 milhões de assinantes; em 2008 serão 400 milhões), a capilaridade aumentou numa escala jamais imaginada, e as conexões (o contato informatizado) tornaram-se praticamente ilimitadas.

Cunhado por um editor de São Francisco, Tim O’Reilly, o termo Web 2.0 designava, originalmente, uma internet mais dinâmica. Agora tem a ver, sobretudo, com a forma personalizada como o conteúdo nela é gerado. Em informatês: “user-generated content”. Em linguagem de gente: auto-expressão. Se o estouro do YouTube (o site mais popular da internet, 100 milhões de clips vistos por dia) tivesse sido a única novidade do ano, 2006 já teria sido um ano histórico no campo da informática e da comunicação. Mas, no rastro do YouTube, que, a exemplo do Google, já virou verbo, chamaram a atenção o MySpace (fotos, demos, classificados, videoclips, um karaokê eletrônico), o Dailymotion, o Pure Volume, o Garage Band, o Metacafe, o Pandora.

Existem hoje mais de 400 mil sites de integração social sonhando com ser o MySpace da vez, mais de 200 veículos de vídeos inspirados no YouTube, centenas de mega-sites agregando, por links, outros tantos, todos crentes que farão dinheiro com publicidade. A News Corporation (um dos tentáculos de Rupert Murdoch) deu US$ 580 milhões pelo MySpace, em julho. O Google arrematou o YouTube por US$ 1.65 bilhões, em outubro. Os demais aguardam ofertas de outros Golias da mídia. Resumindo: no sexto ano do século 21, a internet ficou mais democrática, inclusiva e wiki (“quick”, rápida, em havaiano), e nós não apenas navegamos e trocamos mensagens pela internet, como também trabalhamos, inserindo opiniões, insights preciosos, abobrinhas e cretinices em blogs, revisando e adulterando a Wikipedia, gravando podcasts, escrevendo livros virtuais, produzindo resenhas para a Amazon, enviando vídeos para o YouTube (e até para o PornoTube), fazendo do Orkut um misto de ponto de encontro, palanque, dazibao e samizdat, montando emissoras de rádio virtuais pelo Pandora.com (só eu já montei quatro).

Pena que Ortega y Gasset, George Orwell, Aldous Huxley, Marshall McLuhan e Abraham Moles não tenham vivido o bastante para testemunhar e avaliar essa passiva rebelião das massas, esse maravilhoso mundo novo em que, por detrás dos meios e das mensagens, não há um Big Brother, mas milhões de Winston Smiths – muitos, infelizmente, narcisistas, solipsistas, preconceituosos, ignorantes, complexados e hidrófobos. De todo modo, não será com essa laia que a comunidade WWW deverá consumar o seu destino manifesto, que é o de construir um novo tipo de entendimento internacional, não mais intermediado exclusivamente por políticos, manda-chuvas e sabichões, mas por pessoas comuns: de cidadão para cidadão. A internet é mais do que uma tecnologia, é um modo completamente diferente de organizar nossas vidas. Navegar é preciso.

Os executivos da indústria de entretenimento, em especial os da TV, não anteviram as potencialidades do YouTube, até previram seu fim, sob os escombros de processos por direitos autorais, mas acreditam que acordaram a tempo depois de sua aquisição pelo Google. A NBC Universal, a Viacom, a News Corporation e, possivelmente, a CBS pensaram numa joint venture para concorrer com o YouTube, que só não tentaram destruir, retirando-lhe o conteúdo que, afinal, lhes pertence, com receio de uma represália dos fãs do site e das leis antitrustes. Difícil prever no que vão dar essas conversações, pois conflito de interesses e objetivos entre os quatro gigantes é o que não falta. A News Corporation é dona da Fox News e do MySpace. A Viacom tem a MTV, que compete com o MySpace. O Google está de olho no inventário de som e imagem da CBS, já abriu negócios com a Viacom e negociou licenciamentos com a Warner Music Group, a SonyBMG e a Universal Music Group (que, não obstante, lança em 2007 o SpiralFrog, de onde será possível baixar gratuitamente todo o seu acervo musical).

Enquanto isso, o YouTube reina quase absoluto. Surgiram lá os maiores fenômenos de comunicação, sinapses eletrônicas e evasão de privacidade dos últimos tempos: das gozações da Comedy Central e do Daily Show de Jon Stewart ao videodiário da Lonelygirl15, da falsa entrevista de “Tapa na Pantera” ao sarro aquático da Cicarelli. A atriz Maria Alice Vergueiro nunca fora tão vista e admirada antes de sua hilária defesa da maconha. Jessica Rose era uma ilustre desconhecida neozelandesa até aparecer no YouTube como uma solitária videoblogueira adolescente inventada por dois californianos. Pela última contagem, 24 milhões de internautas se interessaram pelos dilemas afetivos da moça.

Arte de produção doméstica, alternativa, amadorística, reciclada, canibalesca, paródica e recombinante, distribuída e promovida de forma independente e criativa, o que rola na mídia online (os roqueiros ingleses Arctic Monkeys e Lilly Allen conquistaram seus primeiros fãs através do MySpace, a maior interface do rock de garagem) é, na maioria das vezes, canhestro de doer. Mas essa lambança criativa tem seu lado positivo. Ao agredir as noções estabelecidas de profissionalismo, anarquizar com preceitos legais de posse autoral, desprezar o ideário marqueteiro do sucesso a qualquer preço e fazer um remix tecnológico da cultura popular, quase sempre em alta indefinição, os bárbaros da Web 2.0 estão forçando as gravadoras, os estúdios de cinema, a imprensa escrita e tudo mais que represente o establishment da comunicação e do entretenimento a rever certos conceitos e estabelecer novos planos de sobrevivência.

Claro que só os talentos autênticos e satisfatoriamente profissionais prevalecerão na galáxia de Berners-Lee, como só os talentos autênticos e satisfatoriamente profissionais costumam prevalecer na galáxia de Gutenberg.

A revista eletrônica Salon também pinçou na internet a sua personalidade do ano. Shekar Ramanuja Sidarth, o escolhido, é um rapaz de 20 anos, americano de origem indiana, que, meses atrás, tornou-se uma espécie de Michael Moore e Abraham Zapruder da era YouTube. Assim como Zapruder foi o único a registrar em imagens o assassinato de John Kennedy, Sidarth foi o único a gravar com uma câmara de vídeo um discurso catastrófico do senador republicano George Allen, que, divulgado pelo YouTube, desgraçou suas ambições políticas pelos próximos não sei quantos anos. Allen pretendia concorrer à sucessão de Bush, em 2008, e reeleger-se senador pela Virginia, em novembro passado, mas caiu na asneira de saudar um grupo de eleitores de forma jocosamente racista (“Olá, macacada!”), deu azar de Sidarth estar presente, com sua camcorder ligada, e lá se foi, para início de conversa, a cadeira do Senado.

Com uma câmara de vídeo, um computador e banda larga, está armada a guerrilha do século 21. Quantos pilantras e corruptos as microcâmaras do telejornalismo da Globo não entregaram, no ano que passou? Às vezes, nem a câmara faz falta; basta a internet. O e-mail consolidou-se, em 2006, como o mais rápido e eficaz meio de mobilização política. Convocação para passeatas, abaixo-assinados, palavras de ordem, detrações, todas essas ações são agora deflagradas digitalmente. Foi pela internet que os americanos organizaram sua pressão pelo fim da guerra no Iraque, amealharam novos eleitores e novas contribuições para seus candidatos nas eleições de novembro, e nós, reféns do Congresso mais funesto da história do País, disseminamos nossa repulsa pela duplicação dos salários dos parlamentares, cujo frutuoso desfecho todos conhecem.

Rotularam de “netroots” os militantes políticos que adotaram esse modus operandi. São os ativistas da rede. Sem a agitação deles, Ned Lamont não teria derrotado o popular Joseph Lieberman nas primárias do Partido Democrata, em Connecticut. “Sem os netroots, os democratas não estariam onde agora estão”, ressaltou o novo líder da maioria no Senado, Harry Reid, em seu blog no Daily Kos.

As cassandras da rede fecharam 2006 esbanjando otimismo. Aos agourentos que não se cansam de lembrar a bolha da internet de seis anos atrás, contrapõem dados e sinais de vitalidade irreversível. Tim Berners-Lee, com a autoridade conferida pela paternidade da WWW, anunciou, na edição de fim de ano da revista The Economist, que o próximo grande passo da internet será a integração de dados proporcionada pela adoção de um vocabulário comum, o que vale dizer a utilização de uma semântica que simplifique ao máximo a circulação e troca de informações. O futuro, segundo ele, é a Semantic Web. Com protocolos e padrões gratuitos engenhosamente simples e versáteis.

Que venha a Web 3.0.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no caderno "Aliás", de O Estado de S. Paulo, em 30 de dezembro de 2006.

Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 16/4/2007

 

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