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Segunda-feira, 30/4/2007 Cronista puro-sangue Humberto Werneck O passo seguinte, mais ambicioso, seria A festa, que Ivan Angelo começou a escrever em 1963, mas que não tardou a interromper, desestimulado pelo clima repressivo que o golpe de 1964 fez baixar sobre o país. Só em 1973, ainda em plena ditadura militar, voltou a trabalhar no romance, alterando o plano inicial para fazer dele, além de obra de arte, um extraordinário documento sobre aquele sombrio capítulo da vida brasileira – sem confusão possível, é bom distinguir, com certa ficção escancaradamente política que por algum tempo andou provocando arrepios mais cívicos do que estéticos em leitores pouco exigentes. A publicação de A festa, contemplado com o Prêmio Jabuti em 1976, veio fechar um longo parêntese em que, pelo menos para efeito externo, Ivan Angelo foi monogamicamente jornalista – primeiro em Belo Horizonte, depois em São Paulo, onde se fixou em 1965 para participar daquela que seria uma das experiências mais ricas e fecundas da moderna imprensa brasileira: o então revolucionário Jornal da Tarde, criador de escola tanto na feição gráfica como no apuro do texto. Convocado a desempenhar funções de comando, é pena que só de raro em raro ele tenha servido aos leitores, em matérias assinadas, a sua também refinada prosa jornalística. Depois de A festa vieram as cinco novelas de A casa de vidro, escritas no espaço de um ano, publicadas no final de 1979 e traduzidas nos Estados Unidos. Veio também a experiência de escrever para a televisão, sob a forma de cinco roteiros para a série Plantão de Polícia, da Rede Globo, em 1981. Em A face horrível, de 1986, premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Ivan Angelo reuniu cinco histórias recentes e, retocadas, as sete de Duas faces – uma das quais, “Dénouement”, foi retrabalhada a fundo, desdobrando-se num fascinante tríptico que se converteu, nas mãos de escritores, jornalistas e estudantes, em precioso material de aprendizado do bem escrever. A esta coletânea, reeditada em 2006, seguiram-se O ladrão de sonhos e outros contos (1995), Amor? (1995, Prêmio Jabuti de romance), Pode me beijar se quiser (1997, Prêmio APCA de romance juvenil), História em ão e inha (infantil, em versos, 1997), O vestido luminoso da princesa (infantil, 1998) e O comprador de aventuras e outras crônicas (2000). Este último, numa edição da Ática que visava sobretudo o público estudantil, foi a primeira reunião em livro da produção menos conhecida de Ivan Angelo, a de cronista. Não se tratava, porém, de um estreante no gênero, com o qual, ao contrário, se familiarizou bem cedo, ainda em Belo Horizonte, escrevendo em jornais e na revista mensal Alterosa. Já em São Paulo, ele foi cronista bissexto até 1996, ano em que iniciou colaboração regular no jornal O Tempo, da capital mineira. É dessa fase a sua esplêndida série “Minha cidade centenária”, escrita por ocasião dos cem anos de fundação de Belo Horizonte, em 1997; são textos cujo interesse vai muito além da efeméride e dos limites regionais, como deixa claro a leitura de “Amores montanheses”. O cronista Ivan Angelo ganhou audiência bem mais ampla em 1999, quando foi convidado para ocupar, a cada quinze dias, a última página da revista semanal Veja São Paulo. Não tardou a cativar os leitores da publicação, que se contam às centenas de milhares – mas faltava fazer chegar a muitos mais, para além da região metropolitana de São Paulo, onde circula o semanário, a prosa sedutora e substanciosa desse cronista puro-sangue. Sim, puro-sangue. É conhecida a dificuldade em que mesmo os especialistas se enredam quando se trata de definir o que é crônica. Rubem Braga, inigualável no gênero, costumava brincar quando lhe faziam a pergunta: “Se não é aguda”, dizia, “é crônica”. Há mesmo quem duvide de que seja propriamente um gênero, preferindo vê-la como um híbrido subproduto do jornalismo e da literatura. Pouco importa. Basta-nos constatar que a crônica, chegada ao Brasil nas caravelas da cultura européia do século XIX, aqui se aclimatou admiravelmente – quem lembra é o crítico Antonio Candido –, a ponto de ganhar uma feição inconfundivelmente brasileira. Um pouco – para baixar (ou levantar) a bola – como o futebol, que nos trópicos veio a ganhar molejo bem diverso da rígida cintura britânica de quem o inventou. Ainda com o nome de folhetim, e antes que as contingências da imprensa a fizessem encolher consideravelmente, para reduzir-se por fim a um palmo de prosa, a crônica teve no Brasil cultores de primeira linha, entre eles Machado de Assis, José de Alencar e João do Rio, potáveis até hoje. Mas só com Rubem Braga, a partir dos anos 1930, foi adquirir as características que fizeram dela um, sem trocadilho, gênero de primeira necessidade na mesa do leitor da revista e do jornal – e também do livro, com especial força a partir de 1960, quando a criação da Editora do Autor (da qual Rubem Braga era um dos donos) permitiu perenizar textos que, escritos para o dia, para a semana, no máximo para o mês, em princípio têm curtíssimo prazo de validade. Além de Braga e de Fernando Sabino – seu sócio naquela empreitada e numa subseqüente, a Sabiá, que foi pelo mesmo caminho –, praticamente todos os cronistas graúdos da época foram então publicados em livro: Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Vinicius de Moraes, José Carlos Oliveira... E também Manuel Bandeira e Cecília Meireles, incluídos nos dois volumes da coletânea Quadrante, depois rebatizada Elenco de Cronistas Modernos, predecessora de outra série de grande êxito, a coleção Para Gostar de Ler, que a Editora Ática lançaria nos anos 1970. O objetivo expresso no título dessa coleção era, de resto, o mesmo dos lançamentos avulsos da Editora do Autor e da Sabiá, e não há erro em afirmar que, tanto num caso como no outro, ele foi amplamente alcançado: gerações sucessivas se formaram, e ainda se formam, na prazerosa leitura de textos que, segundo alguns, nem sequer constituiriam um gênero literário... Acrescido de nomes como Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz e Antônio Maria, que na mesma época escreviam em revistas e jornais do Rio de Janeiro, o time acima escalado protagonizou o momento de ouro da crônica brasileira. Mais recentemente, a palavra passou a agasalhar também uma variedade de escritos de cunho mais jornalístico do que literário – o editorial, o comentário muito em cima do fato. Sem prejuízo da importância que tenham e do interesse que suscitem, talvez se devesse abrigá-los sob outros rótulos, reservando-se o termo crônica para designar uma produção ditada mais pela subjetividade do que pela objetividade jornalística; textos marcados pelo lirismo e pelo humor, quando não por ambos, muitas vezes sob a forma de histórias inspiradas em aparentes miudezas do cotidiano, ou de virtuais poemas em prosa – e sobretudo destilados com a mão leve que naquele momento afortunado fez o encanto do gênero e assegurou sua permanência. Sem desfazer dos demais, aqui se está falando de cronistas puro-sangue – e não é outra a constelação em que gira o mineiro Ivan Angelo, capaz de falar ao leitor em variados registros. Como no caso de um Carlos Drummond de Andrade, de um Paulo Mendes Campos, a viagem que vai da primeira à última página do novo Melhores Crônicas de Ivan Angelo tornará difícil para o leitor a tarefa de decidir onde reside o principal talento do escritor – se na arte de narrar, sem uma palavra a mais nem a menos, uma história bem-humorada, como ele faz, por exemplo, em “A garota da capa”, “Homem ou mulher?”, “Segundas núpcias”, “Sucesso à brasileira” ou “A cobradora”, se na delicada composição de textos fundamente marcados pela poesia, de que “Assombrações”, “Amantes”, “Pasárgada” e “Receita de felicidade” são apenas quatro amostras entre muitas possíveis. Cronista atento e sensível, há um Ivan Angelo cuja voz se faz mais grave (mas nunca grandiloqüente) para abordar mazelas que povoam o noticiário e que, de tanto se repetirem, acabam por anestesiar consciências – caso de “O país das balas perdidas”, “Turismo sexual”, “Encontro com a vítima” ou “Nós e nossa tragédia”. Há também o Ivan Angelo memorialista, dotado de grande poder de evocação e jamais lacrimoso, presente em textos como “Meio covarde”, “Meu tio jogador”, “Meus trens” “Maravilhas na tela” e “Três derrotas”, ao lado de outro que se detém, com precisão e graça, na observação de modismos, usos e costumes – aquele de “Beijos”, “Corpos desenhados” ou a surpreendente “Um toque sem classe”. Já deliciosas no varejo do jornal e da revista, reunidas em livro as crônicas de Ivan Angelo ficam ainda melhores – umas trabalham pelas outras, todas ganham corpo, o conjunto compõe uma exata combinação de sabores. “O segredo da crônica é que ela atua como uma relação pessoal entre o narrador e o leitor”, disse certa vez o próprio Ivan, “como se fosse escrita só para esse leitor.” É com essa certeza que cada um de nós chegará à última linha do novo volume. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Prefácio a Melhores Crônicas de Ivan Angelo (Global, lançamento em maio de 2007) Para ir além Humberto Werneck |
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