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Segunda-feira, 11/6/2007
O fim da gravadora EMI
Sérgio Augusto

Uma festa, um funeral.

A festa é para os 40 anos de Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, comemorados na Inglaterra, nos EUA e pelo resto do mundo. Nem me lembro mais se foi logo em junho de 1967 que o LP chegou ao Brasil. Mas, assim que chegou, foi direto para o meu toca-discos, de onde só saiu para a entrada de outra cópia, sem os arranhões da primeira. Era sentar e deixar a noite rolar, "sit back and let the evening go". Detesto listas e hierarquizações, mas, se pressionado a escolher o melhor disco de rock de todos os tempos, meu voto iria, fácil, para o da banda do Sargento Pimenta – e o segundo para a trilha sonora do filme Sem Destino (Easy Rider).

O funeral é para o fim da gravadora EMI, co-responsável pela magnum opus dos Beatles. Em 21 de maio, a mais antiga gravadora do mundo e, até por isso, um dos maiores orgulhos da indústria cultural britânica, tornou pública a sua incapacidade para "fixing a hole", tapar um buraco de 264 milhões de libras (US$ 520 milhões). A venda da EMI é uma daquelas notícias que a gente lê, "oh, boy", com a mesma tristeza ou melancolia que as novidades recolhidas nos jornais do dia provocam em John Lennon na última faixa de Sgt. Peppers, "A Day in the Life".

Quem dá mais? Quem deu mais, por enquanto, foi a Terra Firma Capital Partners, que não mexe com música, mas ações. Na bucha, 2,4 bilhões de libras, a metade do que a EMI valia sete anos atrás, quando se cogitou de sua fusão com a Warner Music, sua rival hollywoodiana. Acredita-se que a Terra Firma apenas servirá de intermediária na compra da EMI pela Warner.

E pensar que, em maio do ano passado, era a EMI que queria comprar a Warner. Os acionistas desta recusaram os termos da proposta. Depois foi a vez de a Warner dizer "hello" e a EMI dizer "good bye". Alguns meses e bilhões de downloads de música na internet depois, a EMI entregou os pontos. Se o negócio se concretizar, três (e não mais quatro) grandes gravadoras passarão a dominar o mercado mundial. Atravancando os acertos, a impaciência da Warner com os 12 meses que a Comissão Européia, sediada em Bruxelas, pediu para decidir se permite ou não a fusão. Não faz muito tempo, ela vetou a fusão da Sony com a BMG, alegando evitar a criação de um monopólio. Uma Warner-EMI seria muito maior do que uma Sony-BMG.

Norman Lebrecht, guardião da boa música na internet, quase "fell out of bed" com a notícia ("um golpe no coração da indústria musical britânica"), e lamentou que o bilionário Paul McCartney, para citar apenas um parceiro da gravadora com grana o suficiente para resolver a questão, não tenha sequer manifestado o desejo de dar um "little help" à velha amiga. "Sua extinção ameaça transformar a Inglaterra num terra sem música – uma cultura sem voz musical na civilização do download", deplorou Lebrecht.

Tudo bem, a Apple acaba de lançar o iTunes Plus, com todo o catálogo digital da EMI podendo ser baixado pela internet a US$1,99 por música, a ArkivMusic.com está vendendo milhares de títulos do catálogo da EMI em sua loja virtual, mas a centenária gravadora, infelizmente, kaput. Quando, há sete anos, valia o dobro do que por ela pagou a Terra Firma, as coisas pareciam continuar "getting better", melhorando o tempo todo. Mas, cinco anos depois, as vendas de discos entraram no tobogã (queda de 20%, só no mercado americano e só no primeiro semestre de 2006), as despesas com contratos e indenizações alcançaram níveis estratosféricos, e eles tiveram de "stop the show".

Abriu-se um ralo descomunal. O ídolo pop Robbie Williams não justificou em vendas os mais de 80 milhões de libras de seu contrato, o mais alto já assinado na indústria de discos britânica. Embora chutada pelo excessivo encalhe do CD Glitter, Mariah Carey acabou levando 18 milhões de libras de "indenização". Eric Nicoli, atual chefão da EMI, deverá sair com um polpudo cheque no bolso. Em meio a tais reveses, o remix Beatles Love tampouco correspondeu às expectativas.

O roqueiro Chris Martin queixou-se, com razão, das pressões sob as quais ele e seus colegas trabalhavam, ultimamente, para saciar a sede de lucros dos acionistas da gravadora. Segundo o líder da banda Coldplay, as prioridades artísticas da EMI ficaram em segundo lugar. Ou seja, até de seu forte, o alto nível de exigência artística, a gravadora descurou um pouco.

Desde sua fundação, em 1898, com o nome de Gramophone and Typewriter Company, ela foi um exemplo de ecletismo e contradição, tradicionalismo e ousadia. Abrigou artistas de todos os gêneros, arriscou-se na compra de selos independentes ou em decadência, perdeu dinheiro por seus tacanhos vacilos tecnológicos. Quase foi à breca, em 1954, por resistir à voga dos LPs, e aderiu com atraso ao formato CD. Seu mais alto escalão, conservador ao máximo, dizia uma coisa, o andar de baixo fazia outra – e sempre dava certo, "getting better all the time". Se tivesse dado trela aos seus superiores, Fred Gaisberg não teria gravado, em 1902, a voz do tenor Enrico Caruso, nem criado a primeira grande estrela do disco e do gramofone. Quem conhece a história da EMI sabe, perfeitamente, que a tempestuosa Maria Callas encontrou lá seu único selo sob medida. Só os estúdios da EMI, na época em Abbey Road, abriram as portas para aqueles quatro cabeludos de Liverpool.

Formada em 1931, pela incorporação da Gramophone Company com a Columbia Gramophone Company, a EMI (sigla de Electric and Musical Industries Ltd) fez negócios com a RCA Victor e a Columbia Records; adquiriu 96% das ações da Capitol, nos anos 1950; e, nas décadas seguintes, criou um monte de subsidiárias: Parlophone (por onde saiu Sgt. Peppers), HMV, Columbia Records da Austrália, EMI-Odeon, Harvest Records, United Artists Records, Thorn-EMI, Chrysalis Records, Virgin Records. Explicado porque, ao longo de sete décadas, a EMI acumulou um catálogo com artistas da expressão de Caruso, Callas, Frank Sinatra, Arturo Toscanini, Edward Elgar, Otto Klemperer, Pablo Casals, The Beach Boys, Beatles, Pink Floyd, Yehudi Menuhin, Tina Turner, Radiohead, e centenas de outros.

Apesar das dificuldades impostas pela gravação acústica, boa apenas para voz e um ou dois instrumentos, o audacioso Fred Gaisberg gravou, em 1912, a Quinta Sinfonia de Beethoven com a Filarmônica de Berlim, conduzida por Artur Nikisch, o maior regente da época. Tocado pelo entusiasmo de Gaisberg, Elgar topou fazer versões reduzidas de algumas de suas obras para que coubessem nos discos do começo do século passado. Com a introdução do microfone elétrico, em 1925, a EMI deslanchou. Seu catálogo, na década de 1930, é imbatível. Terminada a Segunda Guerra, o poderosíssimo produtor de discos clássicos Walter Legge foi a Viena e contratou todos os grandes talentos musicais da Áustria. Legge casou-se com a soprano alemã Elisabeth Schwarzkopf e teve influência notável sobre Herbert von Karajan e Callas.

Audácia de um lado, timidez do outro. Por ter demorado a aceitar o LP e a fita magnética, a EMI consumiu 34 discos de 78 rotações para abrigar, em 1951, toda a ópera Os Mestres Cantores, de Richard Wagner. Cinco anos mais tarde, repudiou o estéreo, e penou algum tempo para ter um som com a qualidade do que a Decca oferecia. Nos anos 1960 ainda se exigia de seus produtores que trabalhassem trajando calças listradas. George Martin, o prodigioso arranjador dos Beatles, contou ter visto um bocado de artistas pop barrados na entrada da gravadora por não estarem adequadamente vestidos. E não havia jeitinho que os desobrigasse de voltar para suas casas e trocar de roupa. Etiqueta vitoriana na porta, arte e revolução lá dentro.

No final da década passada, a revista Classic CD pediu a seus críticos e colaboradores que escolhessem os 100 maiores CDs de música clássica. Considerando-se sua entrada tardia no mercado de discos digitais, a EMI até que fez bonito. Muito bonito, por sinal. Dos 100 mais votados, um terço trazia o seu selo. Entre os 10 primeiros colocados, a EMI entrou com cinco.

Alguns exemplos: Artur Schnabel tocando as Sonatas para Piano, de Beethoven (gravações de 1932 e 1935); o Concerto para Violino, de Elgar, com solo de Yehudi Menuhin (1932); a Tosca, de Puccini, com Maria Callas, Giuseppe di Stefano e Tito Gobbi, gravada em 1953, no Scala de Milão; o Concerto para Piano, de Schumann, gravado em 1948, com o romeno Dinu Lipatti solando e Herbert von Karajan regendo; as Suítes de Bach (gravadas por Casals entre 1936 e 1939); Fidelio, de Beethoven, com a Orquestra Philarmonia, regida por Otto Klemperer em 1962; A Nona Sinfonia, de Mahler, com a Filarmônica de Berlim, regida por sir John Barbirolli; o Concerto para Clarinete, de Mozart, com Jack Brymer; dois concertos para piano (de Ravel e Rachmaninov) por Michelangeli; as Sinfonias 3, 5 e 6 (de Schubert) e as 4 e 6 (de Sibelius), sob a batuta de Sir Thomas Beecham; Martha Argerich interpretando a Fantasia de Schumann; Tristão e Isolda, com Kirsten Flagstad e Ludwig Suthaus, com regência de Wilhelm Furtwängler.

Uma fábrica de sons para a eternidade, eis, em resumo, o que foi a EMI, o selo do cachorrinho.

E o da RCA Victor? Também era o mesmo cruzamento de bull terrier com fox terrier, chamado Nipper. Só que a Gramophone and Typewriter Company adotou o cão pintado por Francis Barraud na frente. Nipper, assim batizado porque adorava mordiscar (nip) as pernas das visitas de seu primeiro dono, o irmão de Barraud, também nasceu para a fama mundial em Liverpool. Como Nipper sempre se sentava diante de um fonógrafo Edison-Bell para ouvir o som emitido pelos cilindros, Barraud substituiu o fonógrafo por um gramofone, retratou a cena, espalhando a cascata de que o cão deleitava-se com a voz gravada de seu dono ("his master's voice") e vendeu a gravura aos fundadores da Gramophone and Typewriter Company, em 1898. O original, avaliado em US$ 1 milhão, está guardado na sede da EMI. Quem será seu próximo "master"?

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na edição do dia 2 de junho de 2007 no "Caderno2", do Estadão.

Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 11/6/2007

 

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