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Segunda-feira, 2/7/2007
De vinhos e oficinas literárias
Eugenia Zerbini


Red Grapes, Justin Clayton

Os vinhos correm o risco de tornarem-se iguais. Isso porque, há mais ou menos vinte anos, surgiu um crítico chamado Robert Parker, que começou a avaliar os grandes rótulos, dando-lhes notas que passaram a ditar o preço das safras nos leilões ao redor do mundo.

Acontece que, segundo alguns, Mr. Parker – originalmente advogado e hoje, além de oráculo do mercado internacional de vinhos, editor das publicações The Wine Advocate e The Wine Spectator – impõe mundialmente seu gosto particular. Parker aprecia vinhos “coloridos”, de preferência vermelhos profundos, que descem “redondos”, com pouco tanino, cujo “bouquet” (em uma paródia do que acontece com aquele das noivas) quase é jogado para fora do copo, descendo “boisés”. Quer dizer, vinhos que têm gosto de bosque. Pois é, há vinhos com gosto de fumaça (em alguns brancos, um certo ar defumado é muito apreciado), outros com gosto de couro, outros ainda com fundo de mel, pimenta, tabaco, madeira, violeta etc.

Diante de uma nota baixa, para não ver seu terroir desvalorizado, o produtor lança mão normalmente de um consultor. É aí que começa o papel de Michel Rolland, o mais conhecido consultor de vinhos, coincidência ou não, amigo daquele primeiro. Além de racionalizar os métodos de produção, segundo seus detratores, Rolland – proveniente de uma família de produtores de vinho na região de Bordeaux – irá alterar a receita do vinho que é produzido, adaptando-a aos padrões ditos globais, impostos por Parker. Michel Rolland presta serviços de consultoria para mais de 150 produtores espalhados pelo mundo, todos pretendendo aprimorar a qualidade de seus vinhos. No Brasil, assessora a vinícola Miolo.

Apesar das críticas – bem expostas no documentário Mondovino, de Jonathan Nossiter – que vão desde a ligação pouco ortodoxa entre Rolland e Parker, em que uma mão presta serviços e a outra dá nota, até a pasteurização de sabores, uma coisa é certa: nunca se teve tanto vinho bom disponível e, o mais importante, acessíveis em comparação aos preços praticados no passado.

Mas o que tudo isso tem a ver com os livros? Talvez a tentativa de traçar um paralelo entre a forma de se produzir vinhos na atualidade, de um lado, e oficinas literárias e escritores, de outro. Será que estes últimos não tenderiam a estar no lugar de terroirs, curvados sob o peso das influências daquelas primeiras?

Com início, no Brasil, em meados da década de 1980, as oficinas literárias proliferaram rapidamente nos últimos vinte anos. Foram pioneiras aquelas promovidas em Porto Alegre e São Paulo pelos escritores Luiz Antonio de Assis Brasil e João Silvério Trevisan, este último condutor dos trabalhos desenvolvidos na então chamada Oficina Três Rios, patrocinada pelo governo do Estado de São Paulo. Atualmente, destacam-se as oficinas organizadas por José Castello, crítico e escritor, em Curitiba e no Rio de Janeiro, e por Raimundo Carrero, escritor, em Recife. Carrero publicou, em 2005, Os segredos da ficção, em que sistematiza o conteúdo de suas oficinas.

Na abertura desses eventos, aparentemente inspirados nos cursos norte-americanos de creative writting, os ministrantes assinalam que é impossível fazer de alguém um grande autor. Aí entra o imponderável: o talento. Entretanto, fora talento, existem técnicas que podem ser apreendidas e, além delas, disciplina, que pode ser cultivada.

O mais importante é que a criação assemelha-se à natureza, beneficiando-se da diversidade. Ainda que o ato de escrever em si – como o nascer e o morrer – seja pessoal, intransferível e solitário, a convivência com um grupo de interesses convergentes é sempre estimulante. É a polinização feita pela referência a um autor nunca lido antes, pela partilha da leitura conjunta e, principalmente, pela crítica de seus pares. Tudo sem comprometer o trabalho de cada um.

O segundo grande argumento contra as oficinas de criação literária – já que o primeiro é a afirmação de que é impossível ensinar alguém a ser um grande escritor – é que os participantes seriam treinados todos em uma só direção. Receberiam as mesmas instruções, leriam os mesmos textos e absorveriam os maneirismos de seus instrutores. A prática demonstra que isso é falso. Das oficinas dirigidas por Assis Brasil, por exemplo, passaram escritoras de estilos tão diferentes entre si como Cíntia Moscovich e Letícia Wierzchowski.

É certo que, da mesma forma que Robert Parker confere notas a vinhos, muitos condutores de oficinas são convidados a integrar comissões julgadoras em concursos literários, dando notas a escritores (ou a aspirantes a tal). No ano passado, Assis Brasil participou do júri que conferiu o Prêmio SESC Literatura, na categoria romance, à obra de André de Leones, Hoje está um dia morto, como consta da contracapa do livro. Porém, contrariamente a Parker, Assis Brasil parece estar longe de imprimir seu gosto ou estilo em seus julgamentos. O texto de André de Leones pouco tem a ver com a prosa de Assis Brasil.

Pessoalmente, tive meu livro As netas da Ema – ganhador do Prêmio SESC Literatura no ano anterior a André – avaliado de início por uma comissão regional, da qual participou Nelson de Oliveira. Fomentador da conhecida por “geração 90”, Nelson de Oliveira participou da primeira Oficina Três Rios (para qual, por sinal, minha inscrição foi rejeitada). Atualmente, com mais de 10 livros publicados, dirige suas próprias oficinas. Vim a conhecê-lo meses depois do lançamento de meu livro, reconhecendo que temos dicções diferentes de texto. É infundada, por isso, a idéia de que quem ministra oficinas procura valorizar as escritas que refletem suas predileções, descartando os possíveis paralelos entre o Esquire Bob Parker e os professores de criação literária.

Mas, e o comentário generalizado de que hoje os textos em grande parte parecem iguais? São objeto de críticas, por exemplo, os períodos cada vez mais curtos. Esse encurtamento, embora seja atribuído com freqüência à escrita no computador, não é fato novo.

Othon Garcia, em Comunicação em prosa moderna, ainda uma referência sólida de estilo – indicada, por exemplo, na bibliografia relacionada à preparação para concursos para a carreira diplomática –, há três décadas já advertia que o diferencial do estilo moderno repousa na brevidade da frase, construída predominantemente por meio da coordenação, em detrimento da subordinação. “Em vez de períodos longos, caudalosos, enleados nas múltiplas incidências da subordinação, características do classicismo e de certa fase do romantismo, o que distingue o estilo moderno é a brevidade da frase, predominantemente coordenada” (Rio de Janeiro, Editora FGV, 10ª edição, 1982, p. 105).

As reações contras as frases centopeicas do classicismo, segundo ele, teriam sido encabeçadas, no Brasil, por José de Alencar, que no pós-escrito à 2ª edição de Iracema, nos idos de 1870, já pregava a insurreição contra as frases longas do estilo clássico. Levando em conta essas considerações, a conseqüência natural, mais de um século depois, é o texto de Inferno, de Patrícia Melo:

Sol, piolhos, trambiques, gente boa, trapos, moscas, televisão, agiotas, sol, plástico, tempestades, diversos tipos de trastes, funk, sol, lixo e escroques infestam o local. O garoto que sobe o morro é José Luís Reis, o Reizinho. Excluindo Reizinho, ninguém ali é José, Luís, Pedro, Antônio, Joaquim, Maria, Sebastiana. São Giseles, Alexis, Karinas, Washingtons, Christians, Vans, Daianas, Klebers e Eltons, nomes retirados de novelas, programas de televisão, do jet set internacional, das revistas de cabeleireiras e de produtos importados que invadem a favela.

Subindo. Ruas de terra batida. Onze anos, o garoto, Reizinho. Pipa às mãos. Pés descalços.
Short laranja. Uma menina acena para a câmera do cinegrafista. É comum se deparar com uma equipe telejornalística na favela. A garota diz que sabe sambar. E sabe. Projeta o traseiro em direção à câmera, saracoteia, sensual. Dois magricelas, na porta do bar do Onofre, ridicularizam a garota. Chupam manga. A gorda quer rebolar, eles dizem, olha a gorda. Gargalham. Ela os chama de seus bostas bedelhudos e continua a serpentear. Sorri para Reizinho. Os meninos perguntam para o cinegrafista se podem cantar um rap. Podem. A manga é atirada longe. Montes de lixo. Comecem, diz o cinegrafista. Urubus. Cachorros.”.

Afastadas, assim, algumas das insinuações de que as oficinas de criação literária teriam por conseqüência homogeneizar a criação literária, outras ainda permanecem em aberto, sempre discutidas em tese nem sempre verificadas no concreto. Por exemplo, além das observações sobre o encurtamento dos períodos, aquelas acerca do enxugamento das próprias obras. Alega-se que os livros estariam ficando cada vez mais finos (exigência das editoras, caberia indagar), o que é, entretanto, contraditado por obras como Um defeito de cor, de autoria de Ana Maria Gonçalves. Publicado pela Record, em 2006, e ganhador do Prêmio Casa de las Americas, é mencionado como o romance em um único volume mais extenso publicado no país: 952 páginas, nas quais as desventuras de uma família de escravos é narrada através de gerações. Mas, como diria Kipling, isso já é uma outra história. Melhor ser guardada para uma outra vez.

Nota do Editor
Eugenia Zerbini, autora do romance As netas da Ema, vencedor do prêmio SESC Literatura 2004 (neste texto, em especial, valeu o fato de ter morado um ano em Dijon, capital da Bourgone, França, onde, além de estudar Direito e Literatura, seguiu cursos de enologia e culinária).

Eugenia Zerbini
São Paulo, 2/7/2007

 

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