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Segunda-feira, 23/7/2007
A música que surge do nada
Ruy Castro

Você se distraiu e o CD sumiu — já reparou? Aconteceu o que se previa desde fins do século passado (e só dizer isto já impregna a cena com um certo aroma de remédio de barata): o desaparecimento do último suporte material para se ouvir música. O disco, não importa em qual formato, estava condenado a desaparecer, sendo substituído pelos sons que viriam do espaço — também não importando onde este estivesse e, como diria o Woody Allen, até que horas ficasse aberto. Pois as previsões se confirmaram. A música hoje se espreme em aparelhinhos menores que uma caixa de fósforos, os quais tendem a diminuir ainda mais para caber, quem sabe, num ponto grampeado ao lóbulo, ou talvez num piercing espetado ao tímpano. A idéia é a de que, em breve, o ato de ouvir música dispense qualquer objeto físico — inclusive as orelhas.

Isso significa que, em apenas cem anos, o som gravado terá passado do suporte mecânico mais grosseiro para o incorpóreo quase absoluto — das chapas primitivas, tocadas em gramofones do tamanho dos antigos orelhões, para a música que hoje surge de qualquer lugar. Portanto, preencha com livros ou com vasos de cerâmica marajoara as lindas estantes novas com que você presenteou sua coleção de CDs. Para acomodar sua futura e imensa discoteca virtual, um espaço vazio no meio do nada será suficiente. E, se você pensa que passaremos incólumes por isto, engana-se.

Esta revolução não afeta apenas as gravadoras, os fabricantes de CDs e a indústria do plástico (usado para fabricar as caixinhas e aqueles infernais invólucros). Afeta também as gráficas, os designers de capas, os fotógrafos, os ilustradores, os autores dos textos dos encartes, as lojas de discos e, por fim, mas não menos importante, o próprio consumidor de música. Este, subitamente órfão de um objeto que contivesse o disco, já está se perguntando: Para onde foi o prazer visual que sempre se ligou ao ato de ouvir música?

Bem, para ser justo, devo dizer que esse prazer visual não nasceu com a música, mas foi algo que se incorporou a ela à medida que a indústria do som gravado se desenvolveu. Do rolo mecânico de fins do século XIX ao disco de dez ou doze polegadas, feito de goma-laca e cera de carnaúba, e rodando a 78 r.p.m., o salto foi rápido — cerca de dez anos. Mas, a partir daí, esse objeto reinou sobre nós por quase cinqüenta anos, até 1948. E seu apelo visual era pobre. O disco vinha dentro de um envelope de papel pardo, trazendo as insígnias do fabricante, as quais podiam estar cercadas de todo o rococó possível, mas só isto. Um buraco no meio do envelope permitia ler o selo colado no disco com as informações básicas: o nome da canção, do compositor e do intérprete, e o logotipo da gravadora. Cada face comportava de três a cinco minutos de música, o que era suficiente para a música popular, e, por isso, esse disco vinha num envelope individual. Já uma sinfonia, que era mais longa, obrigava a que vários discos fossem gravados em série e acomodados num álbum, mas este também não trazia nenhum apelo gráfico — suas capas, de couro ou papelão marrom ou verde-escuro, serviam apenas para dar as informações essenciais. As coisas só começaram a mudar quando, em 1939, um artista gráfico americano chamado Alan Steinweiss descobriu que as capas dos álbuns podiam comportar grafismos variados, como letras e desenhos coloridos, para torná-las mais atraentes e visíveis nas lojas.

Em 1948, uma nova técnica de gravação em microssulco fez com que os álbuns de 78s fossem compactados num único disco fabricado com vinilite, rodando a 33 r.p.m. e contendo de quinze a vinte minutos de música por face. Por rodar mais devagar e conter mais tempo de música, esse disco foi chamado de long playing — longa duração. Mas, no começo, apenas sua criadora, a gravadora Columbia (a mesma, aliás, que introduzira os desenhos e grafismos nas capas dos álbuns de 78s), podia usar essa marca. O mesmo quanto à abreviatura com que, na intimidade, os long playings passaram a ser chamados — LPs. E supunha-se também que esses novos discos de microssulco fossem inquebráveis, daí a orgulhosa classificação que eles traziam na contracapa: unbreakable microgroove. Na verdade, não eram tão inquebráveis assim — se caíssem de quina, costumavam quebrar —, e o comprador ainda corria o risco de destroncar a língua ao tentar pronunciar a expressão em inglês.

Os LPs vinham no tamanho de dez polegadas (25 cm de diâmetro), para os discos de música popular, e de doze polegadas (33 cm), para os de música clássica. Mas, rapidamente, essa divisão acabou, e os dois formatos, aplicados a todo tipo de música, conviveram até 1954, quando o 12 polegadas se impôs e o formato menor foi abandonado. (No Brasil, que foi o terceiro país do mundo a adotar o LP, em 1951, atrás apenas dos Estados Unidos e da França, os LPs de dez polegadas só foram tirados de linha em 1958.) E, depois desse longo intróito, chegamos ao ponto que nos interessa: o LP de doze polegadas, finalmente estabelecido como um veículo perfeito para o design aplicado à música. É só pensarmos nos seus invólucros — as capas.

Um LP simples era composto de um único disco, ensanduichado num envelope de cartolina, composto de uma capa e de uma contracapa, esta geralmente reservada para a lista das músicas ou para uma breve biografia do artista. Durante muitos anos foi assim, e éramos felizes com tal arranjo. Mas, em certo momento, os LPs começaram a publicar as letras das músicas e a exigir capas duplas ou triplas — as possibilidades gráficas também se multiplicaram, com fotos que se abriam em gloriosos spreads. E quando os LPs propriamente ditos duplicaram ou triplicaram dentro das capas, qual foi a solução? Acomodá-los em caixas, permitindo que o material gráfico também se expandisse num alentado encarte, cheio de fotos e textos. E não ficou nisso. Vários outros formatos revolucionários foram experimentados, como as capas de plástico costurado (adotadas apenas no Brasil, pela antiga Odeon, de 1958 a 1970) ou as de papelão muito grosso, quase indestrutíveis, inventadas nos Estados Unidos pela gravadora Command e usadas no Brasil com exclusividade pela Musidisc.

E o projeto visual propriamente dito das capas? Não há fã de jazz ou de música popular que desconheça nomes de artistas gráficos como David Stone Martin, capista do produtor Norman Granz na gravadora Verve, ou do independente Burt Goldblatt, autor de algumas das capas mais loucas e bem achadas de discos de Carmen McRae ou de Stephen Sondheim. No Brasil, também tivemos grandes artistas do gênero, nenhum deles maior do que Cesar Villela, mais famoso hoje pelas inconfundíveis capas do selo Elenco, de Aloysio de Oliveira, entre 1962 e 1965 — objeto de não sei quantos estudos e teses universitárias nos últimos anos. Mas outros capistas, como Paulo Brèves, Paez Torres, Joselito e Eddie Moyna, tinham igualmente um trabalho de nível internacional.

Tudo isso aconteceu nos anos 50 e 60, as maiores décadas na história do LP em matéria de artes gráficas. Nos últimos tempos, o universo das capas tem sido reconhecido como uma categoria à parte entre essas artes e rendido uma quantidade de livros espetaculares — quase todos no próprio formato quadrado dos LPs, de 33x33cm, o único a fazer justiça à grandeza e beleza das capas. É quase um gênero em si. Pois, depois de babarmos com tantos livros do gênero produzidos nos Estados Unidos e na Europa, finalmente, em 2005, tivemos o nosso, o monumental Bossa Nova, organizado por Caetano Augusto Rodrigues e Charles Gavin e editado pela Petrobrás — pena que numa edição fora do comércio.

Por que a arte do LP se tornou de repente uma coisa tão nobre? Porque, desde meados dos anos 80, o LP foi ferido de morte e, logo depois, transformado em defunto pela instauração do CD. E, como sempre, quando um veículo é alijado do mercado, é hora de conferir-lhe status de "arte". Na verdade, foi preciso que os CDs, lançados pela holandesa Philips por volta de 1985, dominassem esmagadoramente o mercado para que se começasse a enxergar todas as qualidades dos LPs. Comparados a estes, os CDs eram mesquinhos nas suas dimensões de 12x14cm — insignificantes para se expor dignamente uma fotografia e exigindo óculos ou lupa para que se lessem os textos. E os primeiros a sofrer com essa mesquinhez foram os LPs cujas capas foram apenas reduzidas, em vez de adaptadas para o novo formato: sua arte original sofreu para continuar visível e os textos de contracapa ficaram impossíveis de ler. E, para completar, a palavra LP foi banida do vocabulário. Por causa do CD, que era feito de metal, o LP passou a ser chamado de "vinil" — e é assim que, hoje, até os veteranos que se julgam esclarecidos passaram a se referir a ele. Mas chamar um LP de vinil é tão bobo quanto chamar um CD de metal.

Como era de se esperar, o CD só precisou de alguns anos depois de implantado para também se adaptar a um design mais criativo. Surgiram os estojos de CDs duplos e triplos, permitindo encartes numa grande folha única, com doze, dezesseis ou quantas dobras se quisesse; criaram-se os estojos em formato de caixa de sabonete, com amplos encartes verticais; vieram as caixas em formato de LP, contendo quatro ou mais CDs e um generoso encarte de 33x33cm; e várias outras soluções que permitiam expandir a parte gráfica e torná-la menos mixuruca. Para não falar no formato digipack, que praticamente eliminou o plástico e possibilitou aquelas edições charmosas, tipo caderninho, que, no Brasil, a Biscoito Fino adotou como norma.

Pois, enfim, exatamente quando estávamos começando a nos entusiasmar e a explorar todas as possibilidades gráficas do CD, eis que, agora, ele também pode ser considerado tão peça de museu quanto uma vitrola de corda. No Japão, há garotos de quinze anos que, se um CD lhes cair às mãos, não saberão para o que serve. E isso não demorará a acontecer entre nós.

É como se a música devesse vir de um planeta impessoal, etéreo, feito só de sons, sem textos nem figuras — sem nada que denote a mão, a razão ou o coração do homem.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Também capítulo do recém-lançado livro de Ruy Castro, Tempestade de Ritmos, organizado por Heloisa Seixas.

Para ir além





Ruy Castro
Rio de Janeiro, 23/7/2007

 

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