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Segunda-feira, 13/8/2007
As máximas de Chamfort
Cláudio Figueiredo

No dia 10 de setembro de 1793, Sébastien-Roch Chamfort trancou-se no quarto onde vivia em Paris e, com uma pistola, disparou contra o próprio rosto. Depois de desfechar o tiro que atingiu seu olho direito e destruiu-lhe o nariz, decidido a morrer e surpreso por ainda estar vivo, tentou cortar a garganta com uma navalha. Atingiu o peito, perto do coração, e, antes de perder os sentidos, ainda teve forças para cortar outras veias, nos punhos e nas pernas. A poça de sangue que se alastrou por baixo da porta chamou a atenção das pessoas do lado de fora, que vieram em seu socorro. Ao recobrar a consciência, Chamfort, falando a amigos, ainda ironizou a incompetência e a obstinação com que havia tentado se matar: “O que vocês queriam? É o que dá ser desajeitado; não se consegue fazer nada, nem mesmo se matar.” Cerca de oito meses mais tarde, o escritor morreria, aos 54 anos, em conseqüência desses ferimentos.

Espirituoso, brilhante, bem-sucedido junto às mulheres, popular nos salões da aristocracia, querido por pessoas influentes, admirado pela rainha Maria Antonieta, homem de letras de sucesso brindado pela monarquia com sinecuras e pensões generosas: este era o perfil de Chamfort pouco mais de uma década antes de o escritor puxar o gatilho daquela pistola. Nada em sua história sugeria que ela fosse terminar daquela forma, no momento mesmo em que a Revolução Francesa atingia seu clímax. Refazer o percurso do personagem elegante que circulava nos salões até a imagem do homem desesperado que se debate numa poça de sangue significa acompanhar uma carreira que, tanto pelo que tem de típico como de inusitado, define como poucas a figura do homem de letras francês do século XVIII.

Se dependesse apenas das três peças que escreveu – consideradas unanimemente medíocres aos olhos críticos da posteridade –, Chamfort não passaria de um nome obscuro escondido nas notas de pé de página das obras de eruditos e especialistas. Toda a reputação de que o escritor goza hoje se deve apenas a uma pilha de cartões soltos que guardava nos seus aposentos e nos quais registrava, nos últimos anos, suas reflexões, opiniões, casos e observações sobre os personagens com quem convivia. Precedidos do antetítulo um tanto irônico Produtos da civilização aperfeiçoada, eles foram publicados em 1803, nove anos, portanto, depois de sua morte, com o nome de Máximas e pensamentos, personagens e casos.

De origem modesta, Sébastien-Roch-Nicholas (ele mudaria o sobrenome para Chamfort anos depois) nasceu em Clermont-Ferrand, em 1740. Registrado pelo dono de uma venda e sua mulher, ele teria sido na verdade filho natural de um sacerdote. Estudando em Paris graças a uma bolsa, destacou-se entre os alunos de um colégio religioso, acumulando uma série de prêmios. No entanto, qualquer vocação religiosa estava fora de questão:

Nunca serei um padre. Amo demais o descanso, a filosofia, as mulheres, a honra, a verdadeira glória; e muito pouco as rixas, a hipocrisia, as honrarias e o dinheiro.

Procurou ganhar a vida trabalhando como preceptor e funcionário até, em 1764, apresentar sua primeira peça, La jeune indienne. Uma das muitas variações sobre o tema do bom selvagem, a peça, bastante fraca segundo todos os críticos, põe em cena uma índia de uma tribo da América do Norte que se envolve com um náufrago inglês. Essa heroína pouco verossímil se expressa em versos, mostra-se capaz de compreender metáforas rebuscadas e idealiza com eloqüência a natureza ao seu redor. Daí o veredicto a respeito desta e de outras de suas peças, por parte de Sainte-Beuve, crítico do século XIX, ao detectar um dos elementos trágicos da sua carreira: “Seu talento foi inferior ao seu espírito e às suas idéias.”

Colega de juventude de vários personagens que conquistariam papéis importantes na história da França, ele teve entre seus amigos Talleyrand, que como diplomata serviria ao Diretório, a Napoleão e à monarquia restaurada. Mirabeau, que teria um papel importante na Revolução, prezava sua conversação brilhante e o considerava o mais simpático, estimulante e inspirador de seus amigos: “Não posso me privar do prazer de passar a mão na cabeça mais elétrica que já conheci.”

Depois de obter um prêmio da Académie Française por um Éloge de Molière, alcançou sucesso de público com nova peça, Le marchand de Smyrne. Em 1776, Chamfort pareceu ter tirado a sorte grande ao conseguir representar em Fontainebleau, diante de Luís XVI e Maria Antonieta, sua peça Mustapha et Zéangir. Cai nas graças da rainha, que, após a apresentação, chama-o para cumprimentá-lo pessoalmente, passando a partir de então a interessar-se por sua carreira. Quando os cortesãos perguntaram sobre as palavras elogiosas que a rainha lhe dirigira, Chamfort, reservado, respondeu: “Não poderei jamais esquecê-las nem repeti-las.” O escritor obtém um posto de secretário concedido por um nobre, além de uma pensão de duas mil libras.

Mas é então que ele emite um primeiro sinal de que não se sente à vontade no papel que a sociedade lhe reserva: preocupado em manter sua independência e tomando todo o cuidado para não ferir a suscetibilidade do seu protetor, ele se demite do cargo de secretário. Se, em 1781, é eleito para a Académie Française na sua quarta tentativa de ingressar na instituição, dez anos mais tarde investiria contra ela e suas congêneres num famoso panfleto, Discours sur les academies, no qual defendia sua pura e simples extinção.

O isolamento que, a partir de certo momento, ele passou a buscar, era encarado com perplexidade cada vez maior pelos personagens ricos e influentes que o tinham favorecido. Em carta a um amigo, ele se queixava de que seu sucesso na sociedade havia se tornado um fardo por obrigá-lo a freqüentar pessoas com as quais não tinha nenhuma afinidade: “Seria ridículo envelhecer na condição de ator de uma troupe na qual não se pode aspirar ao papel mais insignificante.” A seguir ele definia e rejeitava o papel de bufão que a aristocracia queria impingir a um homem de letras:

Viverás pobre e bastante satisfeito em ver teu nome citado de vez em quando; te concederão, não alguma consideração verdadeira, mas alguns gestos calculados para adular tua vaidade. (...) Escreverás, farás prosa e versos pelos quais receberás alguns elogios, muitos insultos e alguns escudos, enquanto esperas pôr as mãos em alguma pensão de 25 ou cinqüenta luíses, que será preciso disputar com teus rivais rolando na lama, como faz o populacho durante as distribuições de moedas atiradas nas festas públicas.

Pouco antes da Revolução, ele trocou seus alojamentos na casa de seu amigo, o conde de Vaudreuil, num bairro aristocrático, por um alojamento no Palais-Royal, o complexo de pequenas lojas, oficinas e moradias que, sem ter nada de palácio e muito menos de real, borbulhava de movimentos populares e se tornaria o berço do fanatismo revolucionário em Paris. Em 1789, o movimento que resultaria na Revolução Francesa encontrou nele um partidário decidido. Como explicar a transformação do literato dos salões em republicano exaltado? Suas máximas, tingidas por um tom amargo e cético, mostram o rancor com o qual havia muito observava a sociedade aristocrática, as instituições da monarquia e o obscurantismo da Igreja, postura que o alinhava entre os philosophes, como se definiam os homens de letras da época que abraçavam os princípios do Iluminismo.

O mecanismo que movia as complicadas engrenagens da sociedade aristocrática da época, ao privilegiar títulos de nobreza e desprezar o talento e a competência, parecia-lhe grotesco. A esse respeito é bastante expressiva a comparação que faz dessa sociedade com um edifício composto de diferentes nichos ou compartimentos cujos tamanhos não correspondem à real estatura dos seus ocupantes:

Lá, está um gigante, curvado ou de cócoras no seu nicho; ali, temos um anão sob uma arcada (...). Em torno do edifício circula uma multidão de homens de diferentes tamanhos. Todos esperam que um nicho fique vago para ali se colocar, seja ele qual for.

Muitas de suas observações são extensas demais para serem consideradas máximas, porém, pelo espírito das suas reflexões, Chamfort revela-se um descendente da família dos chamados moralistas franceses do século XVII, como La Rochefoucauld e La Bruyère. Com o próprio Chamfort, e autores como Rivarol e Vauvenargues, o gênero se extinguiria no século XVIII. O refinamento, a delicadeza e a vivacidade de espírito expressos em seus epigramas e aforismos, tão típicos daquele século, estão associados à concisão e à elegância da conversação como cultivada nos círculos em que ele vivia, uma arte que logo entraria em extinção. Chegaram até nós alguns exemplos, na forma de diálogos curtos, colecionados pelo autor destas “Máximas”, como este travado com um de seus rivais literários. Rulhière: “Na minha vida inteira só cometi uma única maldade.” Chamfort: “E quando ela vai terminar?”

Um aspecto que o distinguia dos outros homens de letras do seu tempo era a sua aguda sensibilidade em relação à situação da massa de miseráveis que se espalhavam pelos campos e se comprimiam nos bairros populares das cidades. Voltaire, por exemplo, foi pródigo nos seus ataques ao despotismo e às superstições da Igreja e incansável no socorro às vítimas da intolerância. Mas são raras em sua obra e em sua correspondência as manifestações de simpatia sincera pelas massas de explorados. Chamfort, ao contrário, foi o autor de um aforismo que, numa concisão cortante, em meia dúzia de palavras emite uma das mais veementes condenações de um sistema em todas as suas ramificações, dos mais remotos canaviais nas colônias das Antilhas aos palácios da aristocracia, passando pelos bairros miseráveis de Paris e Londres: “Os pobres são os negros da Europa.”

Se essa consciência em relação ao problema social justificava seu envolvimento com a Revolução, outro traço de sua personalidade fazia com que ele não parecesse talhado para o papel de idealista exaltado e partidário dos jacobinos. Essa característica era o olhar cético, o gosto pelo isolamento, o pessimismo e até certa misantropia que impregnam suas reflexões e máximas. No livro Essais sur les révolutions, outro conhecido seu dos tempos de juventude, o monarquista Chateaubriand observou de modo penetrante: “Sempre me espantou que alguém com tamanho conhecimento sobre os homens pudesse abraçar com tanto entusiasmo uma causa qualquer.” Anos mais tarde, já no final do século XIX, outro admirador, Nietzsche, estranhou que “tal conhecedor dos homens e da multidão, como foi Chamfort, se pusesse justamente ao lado da multidão e não à parte, em renúncia e defesa filosófica”. Para o pensador alemão, a explicação estava no fato de que “havia nele um instinto mais forte que sua sabedoria e que nunca foi satisfeito, o ódio a toda nobreza de sangue”.

Contudo, o autor das Máximas estava sempre pronto a, olhando através dos seus semelhantes, perceber o interesse mesquinho por trás da disposição generosa, o egoísmo embutido no gesto heróico ou o amor-próprio disfarçado em manifestação de amizade. Não é de espantar, portanto, que, apesar do seu ódio à nobreza, os destinos de Chamfort e da Revolução viessem a se chocar. Foi provavelmente pensando nesse conflito que Albert Camus, escrevendo em 1944, chamou a atenção para a relevância de sua biografia: “Pelo conjunto e pelos detalhes, não conheço nenhuma outra que seja mais trágica, nem mais coerente.”

São de Chamfort duas frases famosas associadas, não por acaso, a facetas opostas de 1789. A primeira é o slogan revolucionário que vale por uma declaração de guerra de classes e que iria ecoar pela Europa nas décadas seguintes: “Guerra nos castelos, paz nas choupanas!” Na segunda, reagindo aos excessos sanguinários de Marat e Robespierre, ele comenta com ironia corrosiva o dístico de “fraternidade ou morte” defendido pelos fanáticos: “Sê meu irmão ou morre.”

Aos poucos, Chamfort parece ir se despojando de seu prestígio, dinheiro, posição, pretensões literárias, deixando-se ficar reduzido ao que lhe parecia o essencial: seu senso moral. Apesar do seu radicalismo revolucionário, não tardou a assumir uma posição diante das campanhas de calúnias, das injustiças, dos “assassinatos patrióticos” cada vez mais freqüentes.

Administrador da Biblioteca Nacional, Chamfort foi preso depois de denunciado por um de seus subordinados, que – possivelmente de olho no seu cargo – acusara-o de difamar a memória de Marat, o herói revolucionário que vinha de ser assassinado. Solto, ele foi posto sob a vigilância de um guarda, a quem tinha a obrigação de alojar e alimentar. Marcado por essa experiência e sob a ameaça iminente de ser preso mais uma vez, ele tomou a decisão que o levaria a disparar aquele tiro: “Sou um homem livre, jamais me farão entrar vivo numa prisão.”

O homem que havia conquistado a admiração da sociedade graças à sua habilidade com as palavras, mostrou que, para ele, aquelas eram mais do que um jogo de salão.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado como prefácio do recém-lançado Máximas e Pensamentos, de Chamfort, pela editora José Olympio.

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Cláudio Figueiredo
Rio de Janeiro, 13/8/2007

 

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