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Segunda-feira, 2/9/2002
Padre chicoteia coquetes e dândies
Luís Antônio Giron

O jornalista satírico mais ativo no Brasil do início do século XIX foi o frei beneditino pernambucano Miguel do Sacramento Lopes Gama (1793-1852). Durante quatorze anos, entre 1832 e 1846, ele publicou em Recife e na Corte a série de artigos satíricos intitulada "O Carapuceiro". Uma amostra de 48 textos escritos sob a rubrica saiu em volume de 449 páginas da coleção "Retratos do Brasil" da Companhia das Letras. Organizado pelo historiador pernambucano Ewaldo cabral de Mello, "O Carapuceiro" soma ingredientes para deliciar interessados na Regência, além dos caçadores de aforismos.

O "nosso La Bruyère", como foi chamado no Rio no período que seus textos exerceram impacto, exercitou a crítica política e social munido do chicote do verbo sarcástico, para ele corretivo ideal dos costumes. Seus textos cumpriram a função no tempo e até hoje provocam gargalhadas. Monarquista e reacionário, Lopes Gama condenou as usanças antigas, as crendices populares e as liberalidades modernas. Cresceu em Pernambuco e se criou dentro do gosto colonial. Era lente de retórica do Seminário de Olinda em 1822 quando a mosca azul do jornalismo lhe picou de forma indelével. Passou a publicar e dirigir jornais, como O Conciliador (1822) e Diário de Pernambuvo (1829) e O Popular. Exerceu cargos públicos e morreu traduzindo e escrevendo.

"O Carapuceiro" surgiu para defender a monarquia constitucional expressa na Carta de 1824. Para tanto, o satirista ocupou-se em fustigar as posições radicais e retrógradas, batendo-se pelo caminho do meio. Rechaçava o liberalismo extremado, mas acreditava na solução republicana para um futuro distante: "Para diante, em seu tempo adequado, só nos convirá a república, que é a natural tendência da América", afirmou num artigo de 1834.

O polemista se beneficiou da atmosfera para muitos anárquica daquele momento de materialização da idéia de nacionalidade. É no período regencial, de 1831 a 1840, que a liberdade de imprensa passa a ser exercida com plenitude. O fato vai coincidir com a eclosão do Romantismo e das primeiras narrativas com temática tipicamente brasileira, os poemas de Gonçalves Dias. O primeiro romance brasileiro, A Moreninha, é publicado em 1844, em plena voga de "O Carapuceiro".

O processo se desencadeava de 1802 a 1811, com a edição em Londres do Correio Braziliense ou Armazém Literário, o primeiro jornal livre brasileiro, ainda que dirigido do exílio por Hypolito José da Costa. Desta época à Independência, formou-se o fenômeno que Wilson Martins descreve em História da Inteligência Brasileira como "linha paralela de rebeldes e desajustados que vai conduzir à Confederação do Equador, em 1824, à Guerra dos Farrapos, em 1835, e à Revolução Praieira, em 1838, tudo isso constituindo o ciclo revolucionário em que se estabelecem e consolidam as instituições políticas do Império".

Lopes Gama é um contra-revolucionário, desajustado provinciano contrariado com a instabilidade do período. Época que, até graças ao próprio padre, viria a se fixar como a mais efervescente em termos culturais do Brasil novecentista.

A fatia mais saborosa do "Carapuceiro" fica por conta justamente dos daguerreótipos sociais que o padre tira da vida cotidiana do Recife das décadas de 30 e 40 do século XIX. A língua afiada perpetua os tipos do momento, avalia e detalha os hábitos em rápida transformação, da imaginação colonial para os ideais românticos afrancesados, das novas danças agalopadas aos cardápios que causam constipações nunca antes experimentadas.

Ele populariza, por exemplo, a expressão "nosso espírito macaqueador" no artigo "O nosso gosto por macaquear" (14/01/1840), em que condena os "folhetinhos" estrangeiros: "O que estraga os costumes, o que perverte a moral é, por exemplo, a leitura de tanta novela corruptora, onde se ensina a filha a iludir a vigilância de seus pais para gozar de seu amante, à esposa a bigodear o esposo etc. etc. O que corrompe horrivelmente os costumes é a leitura dos folhetinhos, como o Citador, a carta apócrifa de Talleyrand ao papa, as Liras de José Anastácio e a praga de quadros com moças nuas, de Vênus saindo do banho, de Vênus e Adônis etc. etc., que todos os dias se despacham nas nossas alfândegas".

Dentre os novos costumes repudiados pelo polemista está o namoro, recém-transplantado do Sena ao Capibaribe. Com ele, também aportaram os novos tipos urbanos: o pelintra, a coqueta, o peralvilho e o gamenho, com barbas, suíças, cartolas altíssimas e trajes apertados. O padre desconhecia o termo "dândi", que já estava entrando na moda em Paris pelos fins de 1840. Mas já descrevia otipo em "O que é ser pelintra" (20/04/1842) como "o adônis das partidas", "o cupidinho dos bailes": "Não há madama fashionable, que não queira dançar com um destes bonecos muito espinicados e mais aromáticos que um sepulcro de Quinta-feira Santa. Quem só atenta para a cabeça de um pelintra parece que está vendo Pilatos, Anaz, Caifaz ou o Centurião, mas do pescoço para baixo é um macaquinho, é um bonifrate, é um boneco de peloticas. Ai da menina que chega a esposar-se com um desses jovens da escola peralvilha de Paris!"

Dez dias depois, Gama investe contra moda feminina no artigo "O que é um coqueta": "Esta é uma dama que parece ter o rosto calçado de aço. O cinismo da licença lhe sombreia a cabeça com o seu penacho orgulhoso: o despejo reina em seus olhos nunca visitados do pudor, semelhantes aos das bacantes quando desgrenhadas, e com o tirso na mão pisam todas as leis da decência. Suas roupas curtas, parecidas às das donzelas de Esparta, quando quase nuas iam disputar o preço dos exercícios gínicos, são enfeitadas de cores cambiantes". São as novas mulheres de família, nas quais o frei detecta o "étimo da inconstância", um suspeito "composto de fingimento e seduções".

O látego do jornalista recai também sobre o passado. A referência mais antiga sobre festas populares no Recife é de autoria de Gama, em "A Estultice do bumba-meu-boi" (11/01/1840). Ali esmiúça o folguedo, segundo ele o non plus ultra da estupidez. "Todo o divertimento cifra-se em o dono de toda esta súcia fazer dançar, ao som de violas, pandeiros e de uma infernal berraria, o tal bêbado Mateus, a burrinha, a caipora, o boi(...) Além disto o boi morre sempre sem quê nem para quê, e ressuscita por virtude de um clister que pespega o Mateus, coisa muito agradável e divertida para os judiciosos espectadores".

Tropeçam nos textos de "O Carapuceiro" mártires das modas, escrevinhadores, jogadores, filósofos, padres glutões, jovens mal-educados, africanismos e galicismos a contaminar o português, aleluias e passatempos – como o das quadrilhas. "Estamos no século das quadrilhas, e quadrilhas em todos os sentidos...", dispara o beneditindo linguarudo.

Não foi por pouca malícia que o sociólogo Gilberto Freyre lançou mão da série, raridade em 1931, para redigir Casagrande & Senzala. Lopes Gama pinta um quadro sensual e vivo como a pintura ou mesmo a incipiente ficção da época não conseguiram fazê-lo.

Para ir além





Luís Antônio Giron
São Paulo, 2/9/2002

 

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