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Segunda-feira, 17/12/2007
Onde moram as crônicas
João Evangelista Rodrigues

É nos jornais que moram as crônicas. Pelo menos é onde deveriam. Entre notícias importantes e notas frívolas. Entre reportagens, gráficos, fotos e infografias. Entre anúncios de desaparecidos, de empregos, de produtos de limpeza e uma infinidade de artigos de luxo. Bugigangas. Lixos, na maior parte das vezes. Costumam ficar, ainda, próximas das colunas sociais, entre damas e cavalheiros bem vestidos, decorados para lançamentos de livros, vernissages, campanhas políticas, festas de etiqueta e beneficentes. Pura vaidade e ostentação de senhoras e senhores muito respeitáveis. Puro sinal de prestígio. Podem aparecer, de vez em quando, encostadas ao editorial ou artigo de fundo, igualmente assinadas, assumidas por seus escrevinhadores.

Ficam ali, esquecidas, à mercê de algum leitor mais sensível e menos pragmático. Desses que, em noites de lua cheia, ainda bebem conhaque e olham para cima abismados com a beleza da dita cuja moça de olhos grandes e frios. Leitores cansados de ler sobre nadas, sobre crimes, tráficos de drogas e de influências. De ouvir a mesma cantilena política, demagoga e estéril. Embora o jornal seja seu santuário preferido, as crônicas não se misturam nem se perdem em meio a esses mundos marcados pela objetividade, imparcialidade e neutralidade. Pelos menos assim o querem os que o fabricam e decidem sobre o conteúdo e a forma do jornal.

Crônicas não sabem ser neutras. Lúdicas e irônicas, muitas vezes. Perfeitas, dificilmente, já que são essencialmente vivas e humanas e como tais podem defender idéias e valores. Escritas com frases curtas e orações coordenadas, ganham mais elegância e agilidade. A subordinação dificulta a escrita e a leitura. Mostra-se, na maioria das vezes, em regimes autoritários e impositivos, mesmo quando se trata de estilo.

Crônicas são assim: singelas, quase inocentes. Parecem pássaros de formas estranhas em paisagem insólita, linear, centímetro por centímetro planejadas. Mercantilizadas. Por isso mesmo, as crônicas se destacam por sua originalidade, simplicidade e leveza. Por sua exatidão poética e lingüística. Claro, por não serem rígidas, permitem exercícios estilísticos, experiências verbais, incursões não acadêmicas ou pouco usuais pelo jargão duro e formal do jornalismo diário. Nelas os tempos e as pessoas se misturam. Falam do dia-a-dia, mas são livres em indignações, imaginação e fantasia. Talvez agradem mais ao leitor por isso mesmo.

É gênero híbrido. Não é gênero maior, ainda bem, "graças a Deus", escreveu certa vez Antonio Candido, o crítico a quem a literatura brasileira deve belíssimos ensaios. É por isso que ficam "perto de nós", sem empáfia, afirma. Na sua despretensão, humaniza, e essa humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que, de repente, podem fazer dela uma inesperada, embora discreta, candidata à perfeição.

A crônica é subjetiva e pessoal. Geralmente impressionista e lírica. Nem sempre clara como mandam o método e o estilo jornalísticos. Fala a que veio, sem alardes nem enunciações óbvias. São mais sutis. Artificiosa no dizer, feito aos antigos contadores de histórias, de semelhante aos narradores de causos dos interioríssimos brasileiros. Há quem diga que a crônica é filha do jornal. Outros, que é o seu antídoto contra o próprio veneno que o jornal produz todos os dias, invariavelmente, em seu ofício antiliterário.

Moram no jornal, mas por sua oralidade de origem, podem muito bem sobreviver no ambiente provisório e fluido do rádio. Na televisão, ganhariam outros atrativos. Encarnariam imagens corporificadas de cores e movimentos. Crônicas lidas, no rádio, são uma delícia. Quem não se lembra? Sorrateiras em si mesmas, em sua forma aparentemente natural, escondem suas intenções. De verdade, fingem não tê-las.

Assim, deixam se levar pelo estilo tipo um assunto puxa outro. Escorregam entre os dedos, entre os dentes e a língua. Paladar especial o dos cronistas. Necessário é aprender saboreá-las toda manhã, feito se faz com o café fumegante e o pão-de-queijo ainda quente, recém-saído do forno.

E por falar em crônicas, quem se não lembra de Machado de Assis, Rubem Braga, Carlos Drummond, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, o Veríssimo e muitos outros, todos paradigmas da narrativa moderna. Cronistas por excelência. Todos os cronistas, herdeiros da tradição oral, da sabedoria popular, dos homens e mulheres, dos meninos e meninas dos interiores perdidos em si mesmos, em seus longes, guardados de memória.

Os olhos do cronista, segundo Davi Arrigucci Jr., são treinados no jornal para o flagrante do cotidiano. Afeitos à experiência do choque inesperado em qualquer esquina, estão preparados, em meio à vida fragmentária, aleatória e fugaz dos tempos modernos, para a caça de instantâneos.

É assim que os cronistas povoam os jornais de humanidade e de súbita iluminação. Arte da visão, imagens da vida em suas infinitas crispações. Epifania. Revelação. Retrato urbano, desenhado com pedaços de tempo e de espaço, pela dessacralização da vida moderna, ou pós. Pequenos peixes nas malhas da rede virtual, as crônicas brilham neste emaranhado de signos que é o jornal. Feliz quem as descobre, por querer manifesto ou por acidente de leitor descuidoso. No mais, é deixar que o "formoso assunto" nos assalte, nos alimente de esperança, nos encha a boca e o espírito.

Nota do Editor
João Evangelista Rodrigues, jornalista e escritor, é autor do blog ViaLaxia.

João Evangelista Rodrigues
Arcos, 17/12/2007

 

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