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Segunda-feira, 7/1/2008
Niemeyer e a unanimidade
Daniel Piza

Oscar Niemeyer divide ambientes no sentido literal e figurado. No figurado, porque está longe de ser a unanimidade que alguns autores brasileiros pintam. Há quem o admire muito, como alguns arquitetos mais novos como Christian de Portzamparc e Santiago Calatrava, e há quem o ataque acidamente, como os ensaístas Kenneth Frampton, Robert Hughes e Marshall Berman. Mesmo no Brasil é comum ouvir críticas à falta de funcionalidade de sua arquitetura, que seria de "um escultor, não um arquiteto", assim como a classificação dele como o maior ou um dos cinco maiores arquitetos do século 20.

Acho que parte dos motivos de tanta polêmica está no fato de que sua arquitetura não se encaixa facilmente nas classificações disponíveis. Ele nunca foi um modernista "bauhausiano" ou "internacionalista", do tipo que pretende abolir todo ornamento e toda referência local; tampouco, porém, pode ser classificado como um tradicionalista ou não vanguardista. Do mesmo modo, não pode ser tido como pós-moderno ou como precursor do pós-modernismo em sua ênfase nos elementos quentes e lúdicos, pois Niemeyer sempre foi adepto da simplicidade. A sua é uma arquitetura ao mesmo tempo minimalista e lírica, contida e ousada ― e talvez este seja o maior elogio que se possa fazer a ela.

Não é de hoje que a interpretação da arquitetura se divide entre os que põem ênfase na paixão e na expressão e os que a põem na razão e na construção. Isso vem desde pelo menos a disputa entre o "romântico" Ghiberti e o "racional" Brunelleschi no Renascimento italiano. Nos termos atuais, a contraposição se dá entre a arquitetura "espetacular", como a de Frank Gehry ou Herzog & de Meuron, e a arquitetura "silenciosa", de Renzo Piano ou Tadao Ando. Como de praxe, os rótulos são insuficientes: basta visitar o museu de Gehry em Bilbao e se surpreender com a sofisticada organização dos vazios internos; e basta pensar no Pompidou e lembrar como Piano pode ser orgânico e rítmico.

É por isso que Niemeyer é reivindicado por ambas as correntes. Os do "espetáculo" salientam seu gosto pelas curvas, pelos elementos coloridos, pela disposição cênica em relação ao ambiente. Os do "silêncio" acentuam sua leveza e singeleza, seu desprezo com o acabamento, seus blocos lisos e suspensos. Na realidade, Niemeyer sempre se colocou, deliberadamente, a meio caminho. Seus aprendizados com Le Corbusier e Lucio Costa foram até onde lhe interessava ― o uso de pilotis para revelar o horizonte, o gosto pelo "brise-soleil", etc. ― e logo ele tratou de buscar outras referências, como a natureza do Rio e a arquitetura colonial, para definir seu estilo. Em Pampulha, especialmente, ficou claro que as curvas do barroco mineiro seriam o recurso essencial.

Aqui faço uma advertência. Niemeyer gosta de se dizer pioneiro no uso das curvas e declara que foi ele quem incentivou Le Corbusier a utilizá-las, o que o arquiteto suíço faria com grande brilho na Capela de Ronchamps. Mas as curvas não eram novidade na arquitetura (a começar por Aleijadinho em sua igreja São Francisco de Assis em Ouro Preto), Le Corbu as utilizou de forma diferente (não como recorte do espaço, mas como quebra de simetria) e nos anos 40 e 50 uma série de arquitetos estrangeiros investiria nelas, como Frank Lloyd Wright (Guggenheim de Nova York), Eero Saarinen (TWA, também em Nova York) e Jorn Utzon (Ópera de Sydney).

De qualquer modo, Niemeyer transformou sua combinação de formas curvas e contornos singelos numa assinatura, numa identidade autoral, de tal modo que jamais se confunde uma obra sua com a de qualquer outro arquiteto. Atingiu uma síntese entre a linguagem modernista e a cor local, como não conseguiram nem mesmo os proponentes dessa tese ― Mário e Oswald de Andrade, os paulistas que conheceu pouco antes de ter contato com Juscelino Kubitschek. À maneira de Drummond e João Cabral, ele combinou o construtivo e o expressivo, só que com uma diferença fundamental: em tom maior, não em tom menor. Num gesto raro nas artes brasileiras, Niemeyer sempre gostou do monumental.

Ele costuma dizer que sua monumentalidade não é a dos prédios altos ou a dos volumes pesados, e é verdade. Mas que é monumental, é. Suas obras muitas vezes têm mais apelo quando vistas de longe ― do avião ou de algum ângulo panorâmico. Foi por esse motivo que Hughes disse que são "fotogênicas" mas "desumanas", pois tornam o homem pequeno diante de tanta imensidão de concreto. Não à toa suas praças, como a da Esplanada dos Ministérios ou a do Memorial da América Latina, que em sua visão seriam tomadas por multidões, em geral se encontram desérticas, inabitadas, como grandes maquetes sem rotina vital. Frampton e Berman associaram essa inclinação para as dimensões grandes e superfícies áridas à sua ideologia stalinista.

Também a idéia de que seria melhor escultor do que arquiteto, como já escrevi, não escapa ao exame visual. Seus monumentos, como o de JK e o do MST, para não falar da mão sangrenta do Memorial, beiram o kitsch, por sua retórica emotiva e ao mesmo tempo impessoal. O efeito, nesses casos, se sobrepõe ao signo. Do excessivamente literal "olho" do museu que leva seu nome em Curitiba, para dar outro exemplo, fez como base uma coluna de azulejos amarelos com uma enorme figura estilizada em azul, à maneira de um ginásio esportivo soviético. Nos últimos tempos, sua arquitetura tem se aproximado mais e mais dessas formas gráficas, talvez porque facilitadas pelas técnicas de engenharia modernas. O museu de Niterói, por exemplo, é pouco mais que uma forma de disco voador com uma rampa sinuosa, tal como queria o futurismo de 80 anos atrás. E seu projeto para o novo MAC de São Paulo é feio.

As melhores obras de Niemeyer são justamente aquelas em que o prédio se combina com o grafismo de uma maneira mais integrada, menos mecânica. É o caso do Palácio da Alvorada, com sua sucessão de colunas angulosas que cria uma espécie de caligrafia ao redor do volume principal; o mesmo ocorre nos arcos do Itamaraty, reaproveitados na sede da editora Mondadori em Milão. É o caso da Casa das Canoas, no Rio, em que há uma rara harmonia com a natureza ao redor, pela composição com a pedra e a paisagem. É o caso do interior da Catedral de Brasília, que surpreende a quem do exterior a achou pequena e que o põe sob um amplo rendilhado de linhas e luzes. É o caso do Copan e do Partido Comunista Francês, grandiosos edifícios dançantes. É até mesmo o caso do conjunto do Ibirapuera, pavilhão-marquise-oca-auditório, talvez a mais democrática de suas obras. Nelas, o lirismo vence o gigantismo.

Apesar dos problemas funcionais (falta de ventilação e iluminação, disposição ou espaço ruins para ambientes como banheiros, etc.) e também políticos (pois se trata do comunista que mais trabalhou para governos em todo o mundo, com especial domínio sobre as obras públicas do Brasil), a arquitetura de Niemeyer não pode ser reduzida a eles. Tampouco precisa ser exaltada em bloco, como se não oscilasse entre momentos geniais e fracassos lamentáveis, só porque está na moda entre cultores da arquitetura "espetacular". O que ele fez, porém, nenhum outro arquiteto brasileiro fez: tornou sua arquitetura, mais do que um marco de época ou nacionalidade, uma marca de estilo e universalidade.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, em 16 de dezembro de 2007.

Daniel Piza
São Paulo, 7/1/2008

 

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