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Segunda-feira, 7/7/2008
Uma baby boomer no Twitter
Eugenia Zerbini


A Berthe de Édouard Manet

Se praticássemos diariamente os exercícios indicados pelos manuais de RPG (Reeducação Postural Global), se durante as refeições seguíssemos à risca o conselho dos médicos e mastigássemos sem pressa 20 vezes antes de engolir e se escovássemos os dentes seguindo as prescrições dos dentistas, pouco mais faríamos na vida. Se juntássemos a esse tríduo as horas gastas no trânsito, não teríamos mais tempo para trabalhar. Quem dirá manter-se operante no Twitter. Este, com sua proposta de tornar público o que você está fazendo, apresentou-se para mim como mais uma obrigação, engrossando a lista de tarefas diárias, extensa como as tranças de Rapunzel.

Pelos mares em que navego, meio jurídico, ninguém conhece. No restaurante japonês que freqüento, cheguei a arriscar uma pergunta a um vizinho de balcão, escravo do BlackBerry que havia recebido da rede de hotéis em que trabalha. A resposta foi negativa. Fiz tentativas de identificar utilizações no meio dos negócios para essa nova ferramenta, mas acabei desistindo porque, nas hipóteses que imaginei, o Twitter poderia ser substituído por celular, por MSN ou mesmo por blog, seu parente mais próximo. Eventualmente, para fins didáticos, o uso de Twitter pode acrescentar certo charme ao professor que o adotar no acompanhamento das atividades extraclasse dos alunos. Entretanto, noves fora, com seus posts limitados a 140 caracteres, no propósito de contar o que o assinante está fazendo, à primeira vista o Twitter pareceu-me uma redundância. Bis in idem, colocando o latim em dia.

Ao mesmo tempo, veio à memória minha impressão quando tive a primeira notícia de um blog. Foi no início de 2003, quando essa espécie de diário virtual já grassava por todos os cantos na internet. Mas, o primeiro a gente nunca esquece e foi esse daqui: Aqui tem coisa, do artista plástico Fernando Stickel. Não podia imaginar que, cinco anos mais tarde, os jornais estariam noticiando que os blogs alteraram estratégias de montadoras, como ocorreu no Valor Econômico do dia 17 de junho passado (caderno "Empresas", página B2, acesso restrito a assinantes). Blogueiros de destaque passaram a ser convidados para lançamentos de carros, junto com jornalistas. Por serem considerados formadores de opinião, no início deste ano, quando da apresentação do Punto, a Fiat convidou cinco blogueiros de atividades diferentes para fazer o "test drive". As montadoras, segundo aquele jornal, ainda estão mapeando o que circula na internet, não só na blogosfera, mas também em comunidades, como o Orkut. O entendimento, porém, é que essa nova mídia irá alterar desde os orçamentos com publicidade até os serviços de atendimento ao cliente. O diretor de marketing da General Motors do Brasil ficou surpreso ao passar por um espaço mantido por um chef de cozinha e acompanhar o debate suscitado sobre marcas e modelos de automóveis quando o mestre cuca deixou escapar seus planos de troca de carro: " É o tipo de pessoa que tem credibilidade; porque se eu confio nele para alimentar minha família, também devo ouvir suas opiniões sobre outros produtos", afirmou o executivo.

Lançados por volta de 1998 como diários virtuais, os blogs transformaram-se em ferramentas diferenciadas de mídia social. Durante esse trajeto, revelaram-se não apenas o meio privilegiado para a publicação de novos autores (Daniel Galera, por exemplo), como se transformaram em meio de divulgação de livros (De cabeça baixa, de Flávio Izhaki) e de filme baseados nesses livros (Nome próprio, de Murilo Salles, baseado na obra de Clarah Averbuck). Depois da discussão infindável se blog é literatura, outro degrau foi galgado com o debate se blogueiro é jornalista (e vice-versa). O estado da arte atual é fazer com que esses espaços rendam dinheiro. Nem todos teriam previsto esses desdobramentos em tão curto espaço de tempo.

Além da rapidez, a tônica no ambiente dos blogs ― onde o Twitter dá sinal de uma segunda geração, mais compacta e sintética ― é a imprevisibilidade. Como imprevisível parece ser a própria internet. Quando Bill Gates, na primeira metade dos anos 90, insistia em levá-la à África, lembro de ter lido que lhe perguntaram sobre o objetivo: dar acesso ao mundo à voz da mãe africana que quisesse comunicar que seu filho morria de inanição, naquele instante, em seus braços? O cenário mudou. Quase dez anos depois, por um lado, Bill Gates acabou de formalizar sua aposentadoria da Microsoft; por outro, a Organização das Nações Unidas reconheceu a importância de disseminar o acesso à internet naquele continente, hoje restrito a 2% da população.

Minha experiência com o Twitter foi manca, nada exemplar. Já sem tempo para postar em meu blog, acumulei outro senão: perdi meu celular e não tive tempo de escolher o novo (sim, porque a operadora quando desligou meu número ofereceu-me um outro aparelho, sem custo, bastando que eu escolha o modelo, mistério de consumo). E o atrativo no jogo do Twitter é postar por meio do celular. Por um ato falho, adotei meu nom de plume de meus primeiros tempos de blog ― Berthe, homenagem à filha da Emma Bovary ― e não soube adicionar amigos. Entretanto, no pouco espaço de tempo em que tentei manter meu Twitter no ar, apesar de me sentir como um daqueles forçados de outrora, condenados a trabalhar com os pés atados às bolas de ferro, tive uma constatação elucidativa: nascida no século XX, daqueles tempos em que Plutão era um planeta, minha vida se projeta no século XXI, ainda que eu siga alguns protocolos herdados do século XIX.

Em uma de minhas postagens no Twitter, na véspera de uma festa junina, contei que me preparava para fazer um doce de batata-roxa. A beleza da cor natural dessa batata, roxa como ametista e a flor do ipê, somada com o cheiro do açúcar, do cravo e da canela, me fez perceber o contraste do uso de uma ferramenta nova com um gesto antigo, resumido no ato de apurar um doce. Ao final de um dia típico na agenda de uma mulher contemporânea, eu estava repetindo um ritual ensinado por minha avó, que, quando nasceu, no interior do Estado de São Paulo, desconhecia luz elétrica.

Como aged boomer (destino inglório dos baby boomers), sou da época da televisão em branco e preto, das ligações interurbanas e internacionais completadas através de telefonista. Assisti à introdução da TV colorida e, quando comecei a estagiar, tirar xérox na empresa era um luxo que precisava de autorização do chefe. Minha tese de mestrado foi datilografada em uma máquina de escrever elétrica. Vi meu primeiro PC na Europa, quando cumpri estágio na Comunidade Européia. Quando voltei para o Brasil, deparei-me com a primeira máquina de fax: ficava no andar da presidência do banco em que comecei a trabalhar. A partir daí, tudo se acelerou. Dando um salto, no meu círculo, fui a primeira a ter um blog. Não era fácil explicar para a turma o que era. E, voilá, tive por um curto espaço de tempo um Twitter. Não confesso isso com o mesmo orgulho que Isak Dinesen escreveu "Tive uma fazenda na África, aos pés das montanhas Ngongo" (Fazenda Africana, 1979). Minha aventura, nem tão grandiosa, nem tão digna, também não foi parecida. Mas o espaço ― atualmente, por ação da internet, alterado, diluído e reconfigurado ― fez de mim uma aventureira desajeitada e foi propício a muitas reflexões. Além, bastante além, dos 140 caracteres que me foram postos a disposição a cada uma das vezes.

Nota do Editor
Eugenia Zerbini, é autora do romance As netas da Ema (Record, 2005), vencedor do Prêmio SESC Literatura 2004.

Eugenia Zerbini
São Paulo, 7/7/2008

 

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