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Segunda-feira, 14/7/2008
Machado não é personagem
Daniel Piza


Machado no traço de Stegun

Quantas vezes você já não ouviu que "Machado era como Brás Cubas, não teve filhos porque não queria transmitir o legado de nossa miséria"? Ou que o Conselheiro Aires era seu alter ego, demonstrável por frases como "Tenho tédio à controvérsia"? Ou que Bentinho era como o escritor, tímido e recluso? Pois tudo isso não passa da velha confusão entre autor e personagem. No centenário de morte de Machado de Assis (1839-1908), já é passada a hora de separar um e outro, até para que o mestre seja visto em outra escala de grandeza.

A última frase de Memórias Póstumas de Brás Cubas, "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria", é mal compreendida mesmo por especialistas em sua obra. Não se trata do pensamento de um misantropo, que concluiu filosoficamente que a vida é sofrimento e ter filhos é equívoco. Trata-se do último ato de orgulho de um defunto, que morreu sem ter realizado nenhum de seus sonhos de grandeza, em especial o de ganhar a glória com a invenção do emplastro que salvaria a humanidade ― e, portanto, salvaria o filho que não teve. Em outras palavras, ele está dizendo que não atingiu nada na vida, mas pelo menos não teve filhos num mundo que não salvou...

Os narradores de Machado são pessimistas não porque não acreditam na natureza humana, mas porque um dia acreditaram demais. Machado, o autor, era diferente de seus narradores. Poderia dizer como um de seus ídolos, Schopenhauer, que o problema é que as pessoas esperam que se diga que tudo foi feito da melhor maneira por Deus. Eis outro aspecto de Machado esquecido ou menosprezado: como outro ídolo seu, Voltaire, ele era um anti-religioso. Sua obra é repleta de sátiras e paródias à igreja e não por acaso ele rejeitou o padre para fazer extrema-unção em seu leito de morte.

Esse último fato de sua vida demonstra também que ele não foi o sujeito pacato e convencional que muitas vezes ainda vemos descrito. Por ter passado recluso e triste o final de sua existência na rua do Cosme Velho, especialmente depois que sua amada Carolina morreu em 1904 (o que agravou suas doenças como a epilepsia e a retinite), vigora até hoje uma imagem de Machado como alguém desligado de seu tempo, triste e alheio como caramujo. Mas não foi assim na maior parte de sua vida: amigos como Arthur de Azevedo e Salvador de Mendonça o descreveram na juventude como um sujeito espirituoso e falante.

Tédio a controvérsias? Só se foi depois de ter participado de muitas. Machado foi crítico de teatro, música e literatura, escreveu ensaios como "Instinto de Nacionalidade" em 1873 ― em que desbanca a maior parte da produção literária da época ― e fez em 1878 uma resenha ácida dos livros de Eça de Queiroz, o qual viria a reconhecer muitos dos problemas apontados. Sobre ter filhos, disse em carta a Mário de Alencar, filho de José de Alencar, que lamentava não tê-los. Ao contrário de Brás Cubas, não porque a humanidade não foi salva por ele; mas porque provavelmente não podia, por recomendações médicas ou efeitos colaterais dos remédios que tomava.

Essa confusão entre autor e personagem também atrapalha o entendimento dos próprios personagens. Bentinho, por exemplo, ora é descrito como um sujeito que foi enganado, ora como alguém que manipula o leitor para jogar lama na reputação de Capitu. Daí a controvérsia ― essa sim tediosa ― sobre se Capitu traiu ou não. Ora, Dom Casmurro é um livro com muito mais perguntas do que essa... Bentinho jamais testemunhou a cena da traição, por isso é corroído por essa incerteza. E por que é corroído por incerteza? Porque sua psicologia é a de um rapaz mimado, que tem o futuro garantido e só se preocupa em se entregar ao idílio de amar Capitu. Quando enfim escapa da promessa da mãe de que se tornaria padre, já é tarde demais para perceber tudo o que se havia passado. Casar com Capitu não foi tão abençoado assim.

Bento é um covarde e, mesmo quando parece convicto de que foi traído pela mulher, no enterro de seu melhor amigo, Escobar (eis aqui outra pergunta que o livro deixa em aberto: será que Escobar não se suicidou?), é incapaz de fazer algo contra ela, contra si mesmo ou contra o filho que não seria seu. Prefere mandar Capitu e a criança para a Europa e ainda é capaz de ir todo ano para lá apenas para fingir que os visita. Ele está mais preocupado com a opinião dos outros do que com o enfrentamento dos fatos... Não é nem inocente nem vilão, e já passa da hora de ver a complexidade de sua psicologia.

Logo, nada tem a ver com Machado, que enfrentava os fatos de sua realidade. É verdade que teve lá suas ilusões de juventude, como todos nós. Mergulhado na vida musical e teatral da corte, condecorado pelo imperador a quem tanto bajulava, Machado demorou a perceber que a civilização não seria assimilada tão rapidamente no Brasil... A partir dos anos 1870, porém, passou a ver os problemas ― a abolição sempre adiada, a pobreza sempre ostensiva, a falta de cultura e honestidade ("O brasileiro tem a bossa da ilegalidade") ― e se tornou o cético que conhecemos. Não por acaso, em 1879, sofreu uma crise de saúde e voltou da internação com Brás Cubas, um livro que dispara seu humor contra a mentalidade romântica da classe privilegiada do Segundo Reinado.

No entanto, Machado era um monarquista, ainda que abolicionista (e esteve na fundação da sociedade abolicionista por Joaquim Nabuco), e não exatamente o "crítico do capitalismo" que alguns estudiosos querem ver nele. Machado não escreve do ponto de vista de uma classe social; na realidade, jamais usou a palavra "capitalismo". Como Joaquim Nabuco, deseja uma elite liberal e decente para o Brasil, num regime semelhante ao da Inglaterra ― a pátria onde o capitalismo deslanchou... Como todo grande escritor, Machado também é vítima de seu prestígio. É lido de tantas maneiras que algumas o distorcem.

Temos todos, afinal, um "verbete mental" sobre Machado, passado pelas escolas e pelos meios de comunicação, que está cheio de meias-verdades como as citadas até aqui. A imagem oficial dele, por exemplo, diz que foi um menino mulato muito humilde que ascendeu socialmente por seu talento puro, quase "milagroso" (como gostam de dizer críticos estrangeiros como Susan Sontag e Harold Bloom, ignorantes da brilhante geração que girou em torno de Machado). Mas Machado era filho de pais alfabetizados, vantagem exclusiva de um quinto da população brasileira da época, e aprendeu francês ainda adolescente. Talentos precisam de ajuda, não brotam por combustão espontânea.

O que está claro é que, cem anos depois de sua morte, nenhum escritor brasileiro é tão estudado, lido e debatido. Ao contrário daqueles que se queixaram e ainda se queixam de que ele escreveu apenas sobre a classe alta de um Rio monarquista que já não existe, Machado, tratando dela, tratou da humanidade, dessa natureza humana tão inclinada a ilusões românticas e crenças salvacionistas. Dizem que ele virou as costas para o "verdadeiro" Brasil, o Brasil do interior, dos pobres, dos sertões. Mas, naquele grupo de herdeiros ociosos, vaidosos e paternalistas, mostrou exatamente a ordem de coisas que produzia um país tão atrasado e desigual. Machado é atual e eterno.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Vila Cultural.

Daniel Piza
São Paulo, 14/7/2008

 

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