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Segunda-feira, 12/1/2009
A volta de Gombrowicz
Flávio Moreira da Costa

Uma possibilidade: fazer uma aproximação entre o brasileiro-polonês Samuel Rawet e o polonês-argentino Witold Gombrowicz, dois filhos da diáspora do século XX, dois pioneiros (involuntários e avant la lettre) de uma faceta cada vez mais presente entre nós que é a literatura sem país, transnacional ou mestiça, que nos vem revelando a chamada globalização. (Penso em Sérgio Kokis, o brasileiro que se tornou expoente da literatura canadense.) Poderíamos começar com o conto "Gringuinho", de Contos de emigrante (Rawet) e chegar a Transatlântico (romance, de Gombrowicz). Em 1958, por coincidência, o mesmo ano da estréia de Rawet, o autor deste Pornografia (Companhia das Letras, 2009, 208 págs.), ainda em sua longa vivência argentina, escrevia no seu Diário: "Caminhava com decisão: rígido, afogado na não-vista, na absoluta certeza de ser um demônio, o anticavalo, o antiárvore, o antinatureza, um intruso, um estrangeiro, um outro. Um fenômeno que não era deste mundo. De outro. Do mundo humano." Eles sempre foram, qualquer o lugar onde estivessem, estrangeiros, "um outro", vítimas e portadores de uma divisão interna e de visão insólita, "estranha". (Há um pequeno e notável ensaio de Freud sobre isso: "O estranho".) Parentes próximos de Camus e Kafka. Gregor Samsa acordou um dia transformado num gigantesco inseto. Gombrowicz, um esnobe intelectual da aristocracia de Varsóvia, acordou um dia... bancário em Buenos Aires.

Uma outra possibilidade (mais pessoal) seria voltar no tempo, recuar mais de 30 anos e chegar à época da minha tradução (a primeira, pela Expressão e Cultura, de 1970, quando saíram também os contos bizarros de Bakakai; houve outra, da Nova Fronteira; esta agora é a terceira, embora não haja nenhum registro sobre isso nesta edição) de A Pornografia. Novo no ofício e na idade, cerquei-me de todos os cuidados: as traduções do romance para o inglês (não era boa), para o francês (boa) e para o espanhol (talvez a melhor, já que o próprio autor reviu a tradução). Li tudo o que encontrei de e sobre o autor ― nessas três línguas, já que não havia nada em português. E ainda ousei escrever um ensaio sobre ele para o Correio da Manhã da época (incluído no livro Os subúrbios da criação, de 1979), além da orelha, que aqui reproduzo, com mínimas alterações:

"Quando a metáfora e a metafísica se encontram no acabamento tantas vezes incômodo de um ato de criação, o que se tem como resultado é uma literatura insólita. Nenhuma outra palavra melhor para qualificá-la. A pornografia é um livro insólito.// Não o leia, portanto. Não o leia, a menos que possa perceber que pornografia não é uma categoria externa ao homem, muito menos uma exibição pública de sexo. A pornografia ― propõe Gombrowicz ― somos nós. Ou são eles. A pornografia não é, daí a força de sua (não) existência. Pois talvez nós estejamos marcados, sobretudo por aquilo que não somos. E isso ― paradoxalmente, mas só na aparência ― marca o nosso próprio ser. // A vida é muito complicada para torná-la simples. A vida é muito simples para fazê-la complicada. Falo agora em "vida", depois de ter falado em "metáfora" e "metafísica". E não é à-toa: essas três categorias, ou melhores, esses três elementos reais ― metáfora, metafísica e vida ― servem para definir e explicar o que seja literatura (pornografia?) para esse polonês perverso (?), apátrida (o que é isso?) e genial (pelo menos, escritor de gênio). E não há censura possível de impedir sua existência: é tal a sutileza que não há nesse livro um palavrão sequer. As coisas acontecem debaixo do pano. Ou dentro da cabeça. // Gombrowicz é um homem de definições próprias. Defende a imaturidade contra adultos e maduros. O jovem é uma possibilidade selvagem de vida; o adulto é persona (máscara, representação, Forma). Os jovens são; os adultos estão. // Não cheguei a resumir o livro ― seria traí-lo. Esse romance não tem história, no sentido tradicional; seu grande personagem é a vida mental de um homem, um personagem chamado Gombrowicz. E o leitor não deve ter muita certeza de seus próprios (pré)conceitos; deve deixar-se levar pela trama diabólica (e quase que, no todo, subterrânea) do autor: pois, não tendo história, esse romance é uma das histórias eróticas mais estranhas que já foram escritas."

Termina a orelha. Desculpe sua transcrição, e o tom grave do jovem autor que eu era. Compreenda-se: aos vinte e poucos anos, às vésperas de lançar meu O Desastronauta, tomei doses sucessivas do autor na veia. Se não tivesse partido para outra coisa, teria morrido de overdose. Restou o aprendizado e talvez uma marca (eu diria, indelével, ou imperceptível), de As armas e os barões até meu recente Alma-de-gato. Afinal, ninguém, ainda mais quando jovem, mergulha na obra de um autor como Gombrowicz impunemente.

Essa minha volta há mais de trinta anos, sob o pretexto do relançamento de Pornografia (agora sem o artigo "a"), pela Companhia das Letras, não poderia ter o mesmo impacto em mim ― e talvez em outros leitores que se aventurarem agora em entrar na obra deste "argentino deformado pelos trópicos", como ele mesmo se definiu certa vez. Mas continua valendo, pelas pistas que o autor deixava já em seu primeiro romance, Ferdydurke: "Para comunicar-se com o exterior e, sobretudo, com os outros homens, o homem necessita da forma (e entendo por 'forma' todas as nossas possibilidades de manifestação, como a palavra, a idéia, os gestos, as decisões, atos etc.). Porém essa forma limita-o, deforma-o, viola-o. Expressando através de um ritual já estabelecido de atitudes e forma de ser, sempre falseando e sendo ator."

Duas palavrinhas ― sobre o título e a tradução.

Depois que deixamos de lado a percepção literal da palavra "pornografia" (bastaria desconfiar dos dicionários e desligar a televisão), vamos ver que o título é, na realidade, um achado: além de dar um novo significado à palavra (falei antes em "metáfora" e "metafísica", não falei?) ela ― ou ele, o título ― esconde e acolhe certo tom de perversão sexual de que o texto está impregnado. Já a tradução se inclui numa tendência atual (louvável, aliás) de se utilizar a língua original como ponto de partida. Mas se esquecem que tradução é, também, ou principalmente, ponto de chegada. A tradução em questão é correta, mas nem sempre consegue o nível de linguagem conquistado pelo autor ― e às vezes derrapa em opções vocabulares equivocadas. O verbo "adentrar", por exemplo, é usado umas cinco vezes nas primeiras páginas da narrativa ― logo esse "adentrar" folclórico dos nossos locutores esportivos. ("Pelé adentrou o gramado e...") Nada que um trabalho editorial não pudesse ter evitado.

São detalhes que, longe de desclassificar a edição, não deveriam ― como não devem ― afastar o leitor atento que não se quer enganado por outro tipo de pornografia ― a dos cabeleireiros e livreiros de Cabul, caçadores de pipas e congêneres. É uma oportunidade de se entrar em contato com "um fenômeno que não era deste mundo. De outro. Do mundo humano." Ou seja, a boa, velha e resistente literatura. O último a chegar é mulher de padre.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, em 03 de janeiro de 2009.

Para ir além





Flávio Moreira da Costa
Rio de Janeiro, 12/1/2009

 

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