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Segunda-feira, 2/3/2009
Por que você escreve?
Sérgio Rodrigues

Ele perguntou a ela por que ela escrevia e ela respondeu que escrevia porque tinha vontade, e ele falou, muita gente tem vontade, vontade não basta, e ela disse mas então você está me perguntando como eu consigo escrever, é isso?, e ele ficou em dúvida e ela, eu achei que você tinha perguntado por que eu escrevo e não como eu faço para escrever o que eu escrevo, aí ele ficou um tempo em silêncio e depois riu e disse tá certo, touché, então ela olhou para baixo e notou que ele estava se assanhando outra vez, ah, a juventude, tocou nele e disse, como se fosse um eco na caverna, touché, e pronto, começaram tudo de novo, e só bem mais tarde, de madrugada, o apartamento já quase sem provisões, quando estavam bebendo o vinho velho que ela tinha separado para cozinhar e sorvendo por um buraco na lata o leite condensado encontrado por milagre no fundo da despensa, aquela mistura sensacional de caldo ultradoce e vinho avinagrado, mas um bom vinho avinagrado, chileno, só então ela disse, com os olhos bem encaixados nos dele, eu escrevo porque isso faz homens bonitos e gostosos que nem você gostarem de mim, quererem me comer, aí cruzou os olhos, língua roxa, e falou me come, e ele até que tentou, tentou bastante, mas tinha acabado a pilha.

* * *

O repórter, um garoto espigado, um Clark Kent mais moreno, quase mulato, óculos redondos, beiços fartos, perguntou de gravador estendido por que ele escrevia. Era a mais tolinha das perguntas do manual, mas o velho escritor famoso olhou para o garoto em silêncio, e continuou olhando até ele desviar os olhos e começar a suar no buço. Então pegou o gravador da mão dele, desligou-o e, após devolvê-lo, disse:

― Eu escrevo porque tenho um monstro dentro de mim que, se eu não escrever, vai pular em cima de todos os meninos tesudos feito você que cruzarem o meu caminho, e aí já viu. Para acalmar a fera só tem duas coisas: escribir y joder, ou melhor, ser jodido.

E o jovem repórter ficou respirando forte e olhando para o escritor um tempão. Aí guardou o gravador na bolsa e disse:

― Vamos?

* * *

Em Parati:

― Escrevo porque sou testemunha. Escrevo para dar voz a quem não tem voz. Escrevo porque meu país está aprendendo a ler ― respondeu um baixinho grisalho, provavelmente comunista.

― Escrevo porque não sei tocar saxofone ― disse o quarentão barrigudo que estava ficando careca, mas ainda tentava disfarçar. Provavelmente brocha.

― Não tenho the slightest fucking idea! ― gritou a jovem paulistana de roupa fashion e cabelos picotados. Provavelmente idiota.

― Engraçado, nunca ninguém me fez essa pergunta ― rosnou o gringo entediado. ― Acho que escrevo porque sou muito bom nisso. ― Certamente babaca.

― Escrevo porque escrevo porque escrevo porque escrevo ― mas isso ela já nem lembra quem falou, porque a essa altura desistiu de impressionar seu novo namorado intelectual e partiu sozinha para Trindade numa traineira que tinha o seu nome, Anna O., até a inicial era a mesma, e por dois ou três meses não teve vontade de escrever nem bilhetinho para colar na geladeira.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Todoprosa, de Sérgio Rodrigues, que integra o portal iG.

Sérgio Rodrigues
Rio de Janeiro, 2/3/2009

 

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