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Segunda-feira, 9/3/2009
Sorvete de cheesecake
Antonio Prata

Diz a lenda que Joe Kennedy, pai do presidente, pressentiu o crash de 29 ao receber dicas de investimento do garoto que lustrava seus sapatos. Se até o engraxate estava especulando ― especulou o especulador ― era porque a especulação já tinha ido muito mais longe do que qualquer especulador poderia ter especulado.

Eu, modéstia à parte, também farejei que algo ia mal na economia alguns meses atrás, ao entrar numa grande videolocadora e dar de cara com um jogo de panelas (linha Firenze, revestimento de teflon), seis pares de meias brancas (made in China, dez reais) e uma seção inteira dedicada às lingeries. Quando você acha calcinhas onde buscava Hitchcock, só pode concluir que o mercado está completamente desregulado, não?

Na verdade, eu suspeitava que as coisas andavam confusas desde uma remota tarde no século XX em que a banca do seu Arlindo passou a vender água de coco. Em pouco tempo o jornaleiro comprou um freezer vertical e começou a oferecer também cervejas, refrigerantes e bebidas isotônicas, onde antes havia apenas jornais e revistas, abalando assim um dos pilares de meu pensamento infantil ― a crença de que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa.

Preocupado com a quebra de meus paradigmas, comecei a buscar alguma explicação no papo dos adultos. Falavam sobre a globalização, o fim das fronteiras e a abertura dos mercados. Era isso: seu Arlindo estava abrindo um mercado. E não só ele, percebi, ao reparar no que acontecia com os postos de gasolina: ali, naquela casinha onde antes funcionava uma borracharia, com uma banheira de água imunda e um pôster da Maria Zilda arrancado de uma Playboy de 85, passaram a vender lasanhas congeladas, papel higiênico, canetas hidrocor e outros itens de primeira, segunda ou terceira necessidade.

O que era o tal fim das fronteiras só entendi nos anos 90, não com o desmantelo da Iugoslávia, mas ao deparar-me com um saco de batatas fritas sabor churrasco. Depois vieram o sorvete de cheesecake, o chocolate de cookies e a pizza de cachorro-quente (e ainda crêem que o mercado se regula?!), mas nem me abalei: já estava claro que uma coisa poderia ser outra coisa e, como vimos nos últimos meses, era possível todas as coisas transformarem-se em coisa nenhuma.

Quando entrei na locadora, portanto, e deparei-me com panelas, meias e calcinhas, entendi que aquele era o apogeu do movimento iniciado lá atrás com os cocos do seu Arlindo e que logo viria a debacle. O pai do Kennedy, em 29, vendeu as ações e comprou terras e imóveis. Eu, dentro de minhas limitações, apenas aluguei um filme e levei um daqueles pacotes com seis meias, pela incrível bagatela de dez reais. Meias brancas, médias e lisas, como convém. Afinal, em momentos de incerteza, temos que nos refugiar na tradição.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog de Antonio Prata. Leia também Especial "Crise".

Antonio Prata
São Paulo, 9/3/2009

 

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