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Segunda-feira, 1/6/2009
O que aprendi
Nelson Pereira dos Santos

Eu tinha 20 anos e fui a Paris de navio com uma bolsa do governo francês para estudar cinema. O cargueiro italiano demorou tanto para chegar que acabei perdendo o prazo da matrícula. Fiquei por lá quatro meses e ia toda tarde à Cinemateca assistir filmes. Foi minha melhor escola de cinema, um curso completo de realismo francês dos anos 30. Me formei em direito. Já trabalhava com cinema e só faltava uma matéria para eu pegar o diploma: direito processual civil. O professor da prova oral me disse para escolher sobre o que falar. Ele sacou que eu não era do ramo. Perguntou o que eu queria da vida e falei do cinema. Me fez jurar que eu nunca seguiria a carreira de direito. Em troca, me aprovou na hora. Depois, quando as coisas davam errado, me lembrava da promessa feita ao professor e nunca desisti do cinema. O dinheiro do aluguel garanti como jornalista e professor.

Minha mãe é a pessoa mais importante da minha vida. "Se não comer tudo, não vai ao cinema." Domingo, a sessão começava à uma da tarde e ia até as sete da noite: dois filmes, mais um seriado, desenho animado e trailer do filme seguinte. Eu era moleque e não queria perder nada, detestava me atrasar e perder o começo do filme. A macarronada era servida ao meio-dia em ponto. Eu engolia rápido e limpava o prato. Meus pais eram fanáticos por cinema. A palavra cinéfilo nem existia, mas era isso que eles eram.

Meu desafio como diretor é escolher o ator certo. Depois de escolhido, o negócio é com ele. Saímos juntos, vamos a um botequim e conversamos sobre o filme. O ofício do ator é sagrado e interfiro o mínimo possível. É meu jeito de trabalhar. Admiro a coragem dos atores.

Saí do Partido Comunista em 1956, depois que fui a um festival em Praga com Rio, 40 Graus. Lá, o movimento antistalinista crescia com a publicação do Relatório Kruschev, que denunciava os crimes do Stálin. Mas o pessoal do partido no Brasil dizia que era intriga da imprensa burguesa. Eu simplesmente caí fora daquele subterrâneo e não me arrependo. Nunca mais me filiei a nenhum partido político.

Como Era Gostoso o Meu Francês foi proibido por causa da nudez frontal do Arduíno Colasanti. Mais tarde, o Jarbas Passarinho, ministro da Cultura, quis liberar o filme e mostrou para os bispos da CNBB. Umas freiras assistiram e disseram que a única coisa imoral do filme era a cena em que um francês mata o outro.

Ficam dizendo que nos filmes que fiz em Parati só rolava droga, mas o que tinha mesmo era cachaça depois da filmagem. Não dá para fumar maconha e trabalhar, comandar equipe, enquadrar um plano. Maconha se fuma para ficar numa boa. Minha equipe tem liberdade de fazer o que bem quiser, mas não me venha atrapalhar a filmagem.

Fui convidado a fazer um longa sobre a dupla sertaneja Milionário e José Rico, Estrada da Vida. A ideia era fazer um filme tipo Nashville, uma visão irônica da música caipira, mas me lembrei de como meu pai gostava dessas músicas e decidi fazer um filme respeitoso. Recomendei à minha equipe ouvir música sertaneja até acostumarem os ouvidos. Eram jovens vindos da USP e só queriam rock. Na estreia, os camaradas de esquerda não acreditaram. O filme foi exibido num festival na Itália. Cheguei no final da sessão. Na saída, um amigo uruguaio me viu e atravessou a rua para não cruzar comigo. Em plena ditadura, não me perdoaram por fazer um filme sem ideologia política.

Carlos Vereza é disciplinado em todos os detalhes. No primeiro dia de filmagem de Memórias do Cárcere, estávamos prontos para rodar: centenas de figurantes, os integralistas, os estudantes, a polícia. Me chega o assistente de direção ao pé do ouvido: "Vereza não vai filmar." Reclamava que o figurino estava incompleto. Exigia cueca samba-canção, apesar de aparecer completamente vestido em cena. Pedi que arrumassem um pijama qualquer. Cortamos a calça na altura da coxa e fizemos a bainha. Meu pai era alfaiate. Minha mãe era filha de alfaiate.

Quando Memórias do Cárcere foi exibido em Cannes, o escritor francês Le Clézio, que ganhou o último Nobel de Literatura, escreveu um ensaio de seis páginas na revista Le Nouvel Observateur exaltando o filme. Ele circulava pelo festival incógnito e entrava numa sessão aleatoriamente.

Namoros, mulheres, atrizes? Essa eu pulo. Me casei muito cedo, aos 20 anos. Mas não foi um problema, pelo contrário. O casamento me deu mais liberdade para trabalhar em paz, para criar meus filmes, cuidar das minhas coisas. Eu e minha mulher tivemos algumas rusgas, separações temporárias, mas nossa união prevaleceu por 50 anos, até a morte dela.

Há muita mitologia com a parafernália do cinema. Para mim, cinema é quadro: em cima, embaixo, esquerda e direita. Você tem que combinar tudo dentro desse espaço. Se o cinema evoluiu, não foi pela tecnologia, mas pela linguagem inovadora. O filme era mudo e sem cor, depois ficou sonoro e colorido. Isso não torna um filme mais interessante em sua essência. Mas quando os italianos vieram com o neorrealismo, ou quando os franceses criaram a Nouvelle Vague, aí, sim, foi um marco. A evolução se deu no nível das ideias, da concepção do filme, e não dos equipamentos. A literatura não melhorou por causa do computador.

Nunca saí na porrada em set de filmagem. Não deixo ninguém brigar comigo. Se eu não fosse cineasta, seria diplomata. Estou ficando um pouco ranzinza, não suporto mais frescurinhas, marcação de foco, muita gente em volta, longas esperas.

O maior filme de todos os tempos? A obra do Buñuel como conjunto, ou qualquer filme dele.

Eu diria a um garoto que está começando: tenha a pretensão de transformar as coisas sem se submeter a uma filiação partidária, como fez a minha geração. Isso embaça a visão.

Acredito em Deus de vez em quando, ou quando pega fogo no motor do avião. Não me chateio com bobagem porque o tempo é curto.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista piauí de novembro de 2008.

Nelson Pereira dos Santos
Rio de Janeiro, 1/6/2009

 

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