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Segunda-feira, 17/8/2009
Literatura e mundo virtual
Milton Hatoum


Literature (2007), de James Koehnline

Alguns leitores me perguntam se a internet prejudica a literatura. Outros, em tom apocalíptico, afirmam que o mundo virtual vai acabar com a poesia e com a prosa. Discordo dos últimos, mas antes vou tentar responder aos primeiros.

O mundo virtual permite o acesso de milhões de pessoas a obras de autores cujos direitos autorais caíram em domínio público. Há discussões literárias em salas virtuais, onde geralmente debatem-se ideias sobre livros, e não sobre a vida dos autores, que ajuda pouco quando se quer fazer uma leitura analítica de uma ficção ou de um poema. Na internet você pode encontrar vários ensaios literários de qualidade, mas muitos ― talvez a maioria ― só existem nos livros. Por exemplo: se os admiradores da obra de Julio Cortázar quiserem aprofundar sua leitura dos contos de As armas secretas ou do romance Rayuela (O jogo de amarelinha) e as relações dessas narrativas com o jazz, o surrealismo e outras influências importantes na ficção do escritor argentino, certamente terão de ler o livro O escorpião encalacrado, de Davi Arrigucci Jr. Depois dessa leitura os leitores podem promover um debate na rede virtual sobre a obra de Cortázar.

Mesmo se o assunto a ser pesquisado for vulgar, escabroso, ou eticamente desastroso, como a "Era Collor" ― sim, esse mesmo que assumiu a presidência de uma comissão no nosso triste senado ― o pesquisador terá de recorrer aos livros sobre aquele momento histórico.

Penso que o livro, enquanto fonte de saber, de invenção e conhecimento, não sairá tão cedo de circulação. Curiosamente, muitos textos disponíveis na internet foram ou serão publicados em brochura. Mais do que uma ironia, trata-se de uma simbiose entre a comunicação eletrônica e a tradicional, ou entre a tela e o papel. Essa interação me parece irreversível, mas é provável que a sobrevida do livro seja muito mais longa que a dos jornais impressos. E isso por vários motivos: a imprensa escrita foi consolidada no século XIX, enquanto o livro data de 500 anos atrás. O culto ao livro como objeto está tão arraigado que dificilmente será substituído ― ao menos nas próximas décadas ― pelo livro eletrônico. Uma outra razão diz respeito à prática da leitura e ao hábito do leitor. Sei que é possível ler um jornal inteiro na internet; mas é menos provável que alguém leia Guerra e Paz (de Tolstói) na tela, pois há milhões de leitores acometidos de um mal crônico: a fotofobia. Para esses leitores, que gostam de fazer anotações na margem das páginas e que têm uma relação quase sensual, senão passional com a palavra escrita, o livro é insubstituível.

Quanto aos apocalípticos, que veem na mídia eletrônica o fim da literatura, penso que o suporte da palavra literária não é nem será decisivo para os bons textos em prosa ou poesia. Se isso acontecer, então o destino da humanidade será um mundo em que a imaginação e a fantasia não terão lugar nem vez. Mas abolir tudo isso significa antes abolir a essência mesma do ser humano: a capacidade de inventar por meio da palavra. E essa capacidade não é atributo apenas dos escritores, mas também dos leitores, que são mais numerosos e, não poucas vezes, mais aptos de dar forma e sentido aos sonhos e pesadelos da língua literária.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Terra Magazine, em março de 2009.

Milton Hatoum
São Paulo, 17/8/2009

 

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