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Segunda-feira, 9/12/2002
Literatura para doer, quebrar o mar
Pedro Maciel

Franz Kafka, judeu, nascido em 1883 na cidade de Praga, Boêmia (hoje República Tcheca), então pertencente ao Império Austro-Húngaro, e morto no sanatório de Kierling, um mês antes de completar 41 anos, é um autor que está inserido no movimento dos escritores expressionistas, mas os relatos kafkianos são histórias que sonham a civilização contemporânea.

Quase desconhecido em vida, o autor de "A Metamorfose", criou um mundo realista e absurdo. Reinventou fábulas, lendas e parábolas. Místico, ele compara a sua própria obra a "uma nova doutrina secreta, uma cabala". O escritor era um sonhador e queria "viver dentro da verdade". O autor de "O Castelo" concebeu a literatura como uma expedição rumo à verdade. "Eu quero que a minha literatura doa, que faça as pessoas sofrerem. Ela deve funcionar como um machado, capaz de quebrar o mar congelado que existe em cada um de nós", afirmou.

Toda a sua obra expressa o fantástico, o estranho e a sátira, ao invés do patético. Seus livros desmistificam a organização social que se perpetua, graças a paciência dos subordinados que morrem sem imaginar seus direitos. Kafka é cômico, sarcástico, grotesco. A leitura de "O processo", segundo seu biógrafo, Max Brod, provocou risadas no círculo de amizades do escritor. Max Brod é o amigo-editor que não atendeu o último pedido de Kafka, que desejava a destruição de seus manuscritos após a sua morte. A este amigo-editor devemos o conhecimento de uma das obras mais fantásticas da literatura contemporânea.

Depois de Kafka tudo ficou kafkiano. Otto Maria Carpeaux, que introduziu Kafka no Brasil, diz que "o romancista de 'O processo' é, para alguns, o satírico que zombou da burocracia austríaca; e para outros o profeta das contradições e do fim apocalíptico da sociedade burguesa; e para mais outros o porta-voz da angústia religiosa desta época; e para mais outros o inapelável juiz da fraqueza moral do gênero humano e do nosso tempo; e para mais outros um exemplo interessante do complexo de Édipo... Tudo em torno de Kafka é equívoco."

Há muitas controvérsias entre diversos comentadores da obra de Franz kafka. Afinal, os textos kafkianos permitem diversas interpretações, já que são obras abertas, como os romances que ele nos legou. Os contos e novelas também refletem um mundo ambíguo. A forma e a matéria dos contos são condensadas, às vezes, em dois ou três parágrafos, revelando-se outras histórias, histórias novas que caracterizam os verdadeiros narradores. As histórias apresentam argumentos distintos, mas repetem-se na essência. Toda a literatura é uma reescritura.

Como em "Contemplação", conjunto de peças breves e líricas, publicado em 1912, primeiro livro de Kafka. Os 18 contos são exemplos de textos paródicos, épicos em miniatura. Kafka diz sobre "Contemplação" (trad. de Modesto Carone; ed. Companhia das Letras), que "existe aí realmente uma desordem sem salvação, ou antes: são lampejos claros sobre uma confusão interminável e é preciso aproximar-se muito para ver alguma coisa". Mas há muita poesia nos textos alegóricos. Segundo Walter Benjamin, "as alegorias são, no reino do pensamento, o que são as ruínas no reino das coisas".

Já a novela "O foguista", publicada por Kafka em 1923, primeiro capítulo do romance "América", tem uma atmosfera de pesadelo, clima que norteará toda a obra de kafka. Narra as desventuras do herói karl Rossman no seu exílio americano. A estrutura dramática da novela remete à ficção alemã, praticada por Goethe, e retoma o estilo de Dickens através da narrativa realista.

A prosa universal de Kafka é a história dos pesadelos do mundo moderno. Retrato ampliado das fraquezas e defeitos inerentes à espécie. Em sua biografia de kafka, Max Brod, diz que "qualquer estudo aprofundado de suas fraquezas demonstrará que todas elas emanam, tragicamente, de suas virtudes". As situações intoleráveis, a angústia e o absurdo, os ambientes bizarros e a força psicológica dos seus argumentos são as idéias centrais deste autor clássico.

AS ÁRVORES

Pois somos como troncos de árvores na neve. Aparentemente eles jazem soltos na superfície e com um pequeno empurrão deveria ser possível afastá-los do caminho. Não, não é possível, pois estão firmemente ligados ao solo. Mas veja, até isso é só aparente.

(Conto de "Contemplação / O Foguista", de Franz Kafka)

OS QUE PASSAM POR NÓS CORRENDO

Quando se vai passear à noite por uma rua e um homem já visível de longe _ pois a rua sobe à nossa frente e faz lua cheia _ corre em nossa direção, nós não vamos agarrá-lo mesmo que ele seja fraco e esfarrapado, mesmo que alguém corra atrás dele gritando, mas vamos deixar que continue correndo.

Pois é noite e não podemos fazer nada se a rua se eleva à nossa frente na lua cheia e além disso talvez esses dois tenham organizado a perseguição para se divertir; talvez ambos persigam um terceiro, talvez o primeiro seja perseguido inocentemente, talvez o segundo queira matar e nós nos tornássemos cúmplices do crime, talvez os dois não saibam nada um do outro e cada um só corra por conta própria para sua cama, talvez sejam sonâmbulos, talvez o primeiro esteja armado.

E finalmente _ não temos o direito de estar cansados, não bebemos tanto vinho? Estamos contentes por não ver mais nem o segundo homem.

(Conto de "Contemplação / O Foguista", de Franz Kafka)

Nota do Editor
Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no caderno "Prosa & Verso", do jornal O Globo, a 08 de abril de 2000.

Pedro Maciel
Belo Horizonte, 9/12/2002

 

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