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Segunda-feira, 16/12/2002
Encontro com Borges
Alberto Beuttenmüller

Foi em 1970 que conheci Jorge Luís Borges. Ele veio a São Paulo receber o Prêmio Interamericano de Literatura, instituído por Francisco Matarazzo Sobrinho, o criador da Bienal de São Paulo, o Ciccilo Matarazzo, como era conhecido. O mecenas das artes paulistas resolvera premiar Borges. Esse prêmio nunca mais foi dado a qualquer outro escritor. Fui ao aeroporto de Congonhas esperar o gênio em missão profissional. Trabalhava no Jornal do Brasil, cujo editor era apaixonado pela obra de Borges. No aeroporto, havia uma comitiva de escritores. Lá estavam Lygia Fagundes Telles, Paulo Bonfim, Mario Chamie, entre outros. Escrevo de memória. Não quero usar meus apontamentos. Estão em outra biblioteca e a memória tem a uma grande vantagem - elimina os fatos desimportantes.

Estava em Congonhas diante do meu passado, a esperar Borges, naquele saguão vazio, mas cheio de espelhos e de labirintos da memória. Olhava a escada em caracol, que levava nos anos 60, ao salão de baile do aeroporto. Hoje é restaurante. Ali a orquestra de Sílvio Mazzuca embalava os bailes de formatura de tantas turmas de esperançosos jovens. Haverá crueldade maior do que a esperança? Borges assentiria com sua bela cabeça de raros cabelos brancos. Aos poucos, alguns versos vieram-me à lembrança de seu livro Luna de Enfrente:

Mi Vida Entera: aquí otra vez, los labios memorables, único y semejante a vosotros. He persistido en la aproximación de la dicha y en la intimidad de la pena. He atravesado el mar. He conocido muchas tierras; he visto una mujer y dos o tres hombres. He querido a una niña altiva y blanca y de una hispánica quietud. He visto un arrabal infinito donde se cumple una insaciada inmortalidad de ponientes. He paladeado numerosas palabras. Creo profundamente que eso es todo y que ni veré ni ejecutaré cosas nuevas. Creo que mis jornadas y mis noches se igualan en pobreza y en riqueza a las de Dios y a las de todos los hombres.

O leitor há de pensar que cito de memória, mas não. Comprei as Obras Completas de Borges, numa banca de jornal de Buenos Aires, mas isso foi em outro encontro memorável com "El Brujo". No momento, estamos eu e o leitor, atentos à chegada de Borges. Lá vem ele, com a bengala preferida. Borges tinha uma coleção de bengalas. Trazia-o o secretário Norman, um poeta norte-americano, que fazia estágio junto ao Bruxo. Borges estava de terno branco, menos a gravata azul, presa por prendedor de madrepérola. Na cabeça, um chapéu-de-panamá, que logo tirou, deixando que os raros cabelos respirassem o ar impuro da cidade. Todos se apresentaram, então, Borges me perguntou: "Quem é você?" Respondi que era só um jornalista. Ele, com ironia, aduziu: "La prensa me encanta".

Rimos juntos. Disse-lhe que, ao surgir no portal de chegada me pareceu ter visto o Aleph. Cito um trecho: "Arribo, ahora, al inefable centro de mi relato; empieza, aquí, mi desesperación de escritor. Todo lenguaje es un alfabeto de símbolos cuyo ejercicio presupone un pasado que los interlocutores comparten; como transmitir a los otros el infinito Aleph, que mi temerosa memoria apenas abarca?".

E outro trecho já traduzido: "Os místicos, em transe semelhante, gastam os símbolos: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis fala de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel fala de um anjo de quatro asas que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este informe ficaria contaminado de literatura, de falsidade. (...) Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é."

Borges olhou-me fixo nos olhos. Naquele tempo ainda não era cego, totalmente. Via as pessoas com uma névoa ante os olhos, éramos todos fantasmas para Borges. Borges perdia a visão aos poucos e cada vez me parecia que ele enxergava mais: "São raros os que conseguem ver o Aleph. Precisamos nos falar, mas longe dessa turba."

Perguntei-lhe de H. Bustos Domecq. Borges olhou-me com toda a sua ferina ironia, e respondeu: "Entonces, no sabes? H. Bustos Domecq se murió..." Quis saber o que queria dizer o H do nome de Bustos Domecq criado por Borges e Bioy Casares. (Durante anos jantaram juntos e escreveram a quatro mãos. Por isso, criaram o escritor H. Bustos Domecq.) "O 'H' de Bustos Domecq é só uma letra do alfabeto, como o Aleph..." Bustos fora tataravô de Borges; Domecq, tataravô de Bioy Casares.

Depois de Congonhas, marcamos encontro longe da azáfama e do burburinho das pessoas, teimosas em cobrir-lhe o peito com a medalha da falsa amizade. Ele sabia como ninguém o quanto lhe custava estar diante dessa gente. Não revelarei o local. Borges assim me pediu, há mais de 30 anos; o segredo deve ser guardado, caso contrário, ele virá de onde estiver cobrar-me esta falseta. Neste lugar que chamarei de Aleph, pedi a Borges que me dissesse como, depois de ser um prosador incomum e poeta maior, tornou-se contista.

Vou traduzir para não parecer pedante: "Tornei-me contista devido a um acidente. Bati a cabeça em algo que não sei até hoje o que foi e tive um grave ferimento. Pode ter sido na Esfera de Pascal." -disse em tom de blague. "Passei quinze dias no hospital e fui operado. Quando voltei desse lugar estranho da inconsciência, pensei que nunca mais voltaria a escrever. Quis escrever um poema, mas a poesia era o meu território natural e, portanto, nada provaria. O mesmo me ocorreu, se escrevesse um ensaio. Tu sabes que tudo o que é rotineiro é fácil. Então pensei em escrever algo novo, se conseguisse, minha mente estava bem de saúde. Pensei em escrever um conto. Se não conseguisse, estava acabado para a literatura..."

E o que escreveu? "Pierre Menard, autor de Quijote. Como o conto foi elogiado pelos amigos, percebi que não estava acabado. Assim, comecei a escrever contos por mero acidente."

Enquanto Borges falava, com sua fala mansa e cadenciada, como que metrificada pela poesia, eu divagava. Eu me perguntava por que ele, conhecedor de línguas, amante dos enigmas filosóficos, poeta que sabia capturar a difícil face do real, era um confesso conservador? Por essa atitude recebeu críticas da esquerda Argentina, mas também da direita: "Os argentinos estão virando nazistas sem se dar conta. Perón era um fascista patético. Os governos, em geral, são nacionalistas, e eu não sou; são católicos, e eu não tenho certeza sequer se sou cristão, e se o fosse, não seria católico. Sou um homem livre" - declarou Borges diversas vezes, ele tinha ódio aos políticos.

Quando Vargas Llhosa lhe perguntou sobre política, a resposta de Borges caiu como um raio: "Política é uma das formas de tédio".

Já que citou a Esfera de Pascal, podia dizer algo sobre o seu livro Otras Inquisiciones, de 1945. Nele, Borges definia a História Universal: "Talvez a história universal seja a história de algumas metáforas. Não me lembro de cor o que escrevi, mas me lembro de ter escrito que seis séculos antes da era cristã, o rapsodo Xenófanes de Colofônio, fato dos versos homéricos que recitava de cidade em cidade, condenou os poetas que atribuíam traços antropomórficos aos deuses e propôs aos gregos um único Deus, que era uma esfera eterna. No Timeu de Platão, lê-se que a esfera é a figura mais perfeita e mais uniforme, porque todos os pontos da superfície eqüidistam do centro; Olof Gigon (Ursprang der Griechischen Philosophie, 1830) entende que Xenófanes falou analogicamente; o Deus era esferoidal por ser essa forma a melhor, ou menos má, para representar a divindade. Parmênides, quarenta anos depois, repetiu a imagem: 'O Ser é semelhante à massa de uma esfera bem arredondada, cuja força é constante do centro em qualquer direção'."

Borges concluiu: "A história universal seguiu seu curso, os deuses demasiado humanos que Xenófanes tacara foram rebaixados a ficções poéticas ou a demônios..."

São Paulo ainda tinha garoa naquela tarde estival. Na minha frente, o Bruxo Borges, olhando-me de esguelha, como olham os quase cegos, se divertia comigo, como com qualquer jornalista, por isso a imprensa lhe encantava. A segunda parte do encontro com Jorge Luis Borges deu-se em Buenos Aires, quando falamos de seus amores, um caso raro, em se tratando desse gênio argentino. Mas isso fica para outra vez...

Nota do Editor
Texto inédito, especialmente redigido pelo autor, para o Digestivo Cultural. Alberto Beuttenmüller é poeta, jornalista e crítico de arte (membro da AICA).

Alberto Beuttenmüller
São Paulo, 16/12/2002

 

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