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Segunda-feira, 17/3/2003
Segundo encontro com Borges
Alberto Beuttenmüller

Meu segundo encontro com Borges deu-se por acaso em 1977. Deixei São Paulo por Congonhas, onde conheci Borges e o entrevistei para o Jornal do Brasil, no primeiro encontro. Dessa vez fui a Buenos Aires, a terra natal do Bruxo. Depois de ter feito a curadoria da 14a Bienal de São Paulo, quando a Argentina ganhou o Grande Prêmio, o curador argentino e diretor do CAYC (Centro de Arte Y Comunicación), Jorge Glusberg, convidou-me para fazer uma palestra sobre arte e design. Após a palestra, conheci o pai de Glusberg, um culto homem porteño, amigo de Borges. Assim, nasceu a idéia de um novo encontro com El Brujo. Falamos por telefone com Borges. Para minha sorte, ele se lembrava o nosso diálogo anterior. Fiz questão de dizer que não era uma entrevista, mas apenas uma conversa entre duas pessoas apaixonadas por literatura. Borges gostou:

- Hablar de literatura me encanta! - disse o bruxo, com sua ironia costumeira.

Antes do encontro com Borges, quis dar uma volta pela bela Buenos Aires, à medida que rememorava poemas dele à cidade, sua maior paixão.

Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires, em 24 de agosto de 1899; morreu em 24 de junho de 1986. Não quis ser enterrado na sua cidade. Em 1985, quando foi diagnosticado um câncer de fígado, Borges e Maria Kodama fugiram de Buenos Aires para a Itália, depois para Genebra, onde El Brujo veio a falecer. Foi enterrado no cemitério de Plainpalais. Neste, há a inscrição Borges Jorg-Luis 735D/G6. Seu túmulo tem na lápide, a frase: ...E ele não terá medo. Em outra face da lápide, a frase: Hann Tekr Sverthit Gram/Ok Leggr Methal Theira Bert, que em bom sueco quer dizer: "Ele pega a espada Gram e a deposita nua entre eles". Na parte inferior, a frase: De Ulrica a Javier Otárola. Ulrica é o conto de Borges para Maria Kodama. Até na morte, Borges construiu enigmas.

Andava pelas ruas porteñas e pensava no poema "Muertes de Buenos Aires": La muerte es vida vivida, / la vida es muerte que viene; / la vida no es otra cosa / que muerte que anda luciendo. Andava a esmo pela Avenida de Mayo, a admirar os prédios harmônicos e de igual altura, coroados por cúpulas em estilo francês ou italiano. Diante do Museu Histórico, a Passagem Roverano, a galeria mais antiga da cidade, que se une a calle Hipólito Irigoyen e à estação Peru do metrô, a mais linda e pitoresca do subterrâneo. Nada ali mudou desde que foi inaugurada em 1913. Cruzo a calle Chacabuco e me vejo diante do Café Tortoni. Aí Borges teve mesa cativa e virou peça de museu. O café foi fundado por um snob francês, no século XIX, e freqüentado por Lorca, Pirandello, Rubinstein, Josephine Baker e Astor Piazzolla. As fotos dessas personagens ainda se encontram junto à porta do salão de bilhar. Em honra ao Bruxo, peço manzanilla, um vinho assemelhado ao xerez andaluz. Depois disso, sinto-me pronto para ver Borges na calle Maipu. O vinho me aqueceu o corpo e o espírito, naquele outono enganoso, pois fazia frio.

O apartamento do Bruxo era escuro e parecia antigo, vetusto mesmo. Os móveis eram sombras, não pareciam ter densidade. Borges estava sentado no seu escritório particular, numa poltrona de veludo de cor escura. Começamos a falar de assuntos correlatos, sua passagem pela Biblioteca Nacional Argentina, onde foi diretor de 1955 a 73, quando se tornou um devorador de livros. Depois, falamos de sua experiência como mestre; primeiro, na Universidade de Buenos Aires, onde lecionou literatura de Língua Inglesa (norte-americana e da Grã-Bretanha); depois, como mestre de poesia em Harvard. Foi quando tive vontade de perguntar-lhe o que ele achava de alguns dos livros pontuais da história literária. Lembrei-me de Ulisses, de Joyce:

- Creio que o mundo deu muita atenção ao Ulisses de Joyce. Aqui na Argentina foi uma loucura. Lembro-me que por volta dos anos 40 queriam fazer uma tradução do Ulisses. Para isso criaram uma comissão. Infelizmente ou felizmente, Salas Subirat traduziu o livro antes e acabou com aquele martírio de reuniões sem fim - explicou Borges, rindo.

- Não consegui ler completamente nem o livro do Joyce nem a péssima tradução do Subirat, mas todo mundo aplaudia aquela bobagem.

Ulisses foi publicado na Argentina em 1945, pela Editora Santiago Rueda, que também lançou Retrato do Artista Quando Jovem, em tradução de Damaso Alonso, sob pseudônimo de Alfonso Donado.

Perguntado sobre se existia uma tradução perfeita de Ulisses, Borges pôs a mão na testa, um cacoete comum nele, e descartou:

- Não creio. Ulisses foi escrito no Inglês de Dublin, portanto de fala regional. Caso o tradutor crie dentro do regionalismo de sua língua, a obra perderá em universalização. Se fizer o contrário, também não acertará - disse Borges, agora sério.

- Na verdade, o escritor escreve sempre o mesmo livro, sob outro ângulo ou em outro tempo, em outra idade. Ulisses é uma continuação dos livros anteriores de Joyce, na mesma técnica de neologismos, mas seus contos são melhores, pois neste caso se percebe o escritor, não o filólogo. Com a passagem do tempo, um escritor descobre que as idéias devem ter uma expressão clara e precisa. Só assim criará emoções e atmosferas que ele deseja passar ao leitor. Se escrever uma palavra arcaica ou estranha no seu livro, esse termo só servirá para distrair a atenção do leitor. O ideal é uma frase em que todas as palavras tenham o mesmo valor. O leitor deve ler fluentemente, independente de assunto, seja filosofia ou metafísica.

Tempo-Contratempo-Memória
Apesar de seus labirintos de espelhos e suas metáforas, o que sempre me impressionou em Borges foi o seu modo de conceber o tempo. A pergunta deixa-o surpreso. Passa Leonor Acevedo, sua mãe, vestida de sombras. Pergunta se quero algo para beber. Borges aconselha um Jerez de La Frontera. Vamos a ele, pois. As mãos transparentes de Leonor servem a bebida translúcida. Afasta-se solene. Ainda hoje ouço o farfalhar do seu vestido comprido como uma aparição. Borges amava sua mãe, por isso, seus amores não deram certo. Vamos ao tempo.

- Eu já disse, mas repito: a história universal, quiçá, seja apenas a história de algumas metáforas. O tempo é infinito, não deve ter uma cronologia determinada, mas sim um espaço como o Aleph, voltado para todas as direções, que são infinitas.

Mas o senhor quando deu aula de literatura inglesa pulou do século 11 para o 18, deixando de fora Shakespeare, entre tantos outros poetas?

- É verdade. O que poderia acrescentar a respeito de Shakespeare que todos ainda não sabem? Sempre comparei estilos, deixando de lado a cronologia. Às vezes, um poeta moderno tem muito mais a ver com outro de um século atrás do que com seus contemporâneos. Muitas vezes um poeta tem uma vida mais poética do que sua própria poesia. Eu não sou professor, mas me pediram para dar aulas. Os escritores deixam sua imagem muito mais que suas obras. Quando se fala de Picasso, logo falam de suas mulheres, quando se fala em Van Gogh, logo dizem de sua vida desgraçada. Por isso, dei aulas do que me admirou como leitor, não como escritor. Ler é mais importante que escrever.

O senhor acredita que ficará com a imagem de Picasso ou de Van Gogh?

- Minha vida amorosa foi um desastre, mas não foi tão desgraçada como a do pintor holandês, creio que ficarei no interstício da vida de ambos, no vazio existencial entre os dois.

Dona Leonor Acevedo passa de novo pela porta do escritório. O amor de Borges pela mãe, impediu-o para o amor carnal. Ele tinha aversão pelo fato físico, nenhum de seus amigos jamais o viu nu. E Estela Canto, uma uruguaia emancipada, quando foi pedida em casamento, depois de meses de namoro, disse: "Eu aceitaria, Georgie, mas você não pode esquecer que sou discípula de Bernard Shaw. Não podemos casar sem antes dormimos juntos"...

Nota do Editor
Texto inédito, especialmente redigido pelo autor, para o Digestivo Cultural. Alberto Beuttenmüller é poeta, jornalista e crítico de arte (membro da AICA).

Alberto Beuttenmüller
São Paulo, 17/3/2003

 

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